segunda-feira, 5 de dezembro de 2016

Martha Medeiros: Seu terapeuta é feliz?





domingo, 4 de dezembro de 2016


Martha Medeiros - Jornal Zero Hora - 04/12/16

Seu terapeuta é feliz?

Ele não pode ter uma vida, apenas uma carreira. Tem que fixar residência no consultório e estar sempre a nossa espera de banho tomado e alma lavada

Outro dia acompanhei uma conversa instigante. Em meio a um grupo, uma mulher comentou o quanto havia ficado desconcertada ao saber que sua analista não era feliz. Havia se tratado com ela por três anos, nada sabia da vida íntima da profissional com quem tanto havia desabafado e agora, depois de muito tempo, havia descoberto que a analista tinha problemas pessoais e que inclusive havia tentado o suicídio uma vez.

A tentativa de suicídio me pareceu um acréscimo sensacionalista à história, mas, desconsiderando esse detalhe, me concentrei na fantasia que alimentamos a respeito desses profissionais.

Eles ajudam a amenizar nosso sofrimento emocional, a tomar decisões necessárias para que a vida destrave, a compreender e perdoar nosso passado, a vencer medos e traumas, enfim, fazem uma assistência técnica básica. Para que o processo dê resultado, contam com nossa sinceridade e confiança, e é por isso que despejamos, sem reservas, tudo aquilo que ocultamos até de nós mesmos. Declaramos abertamente nossas fraquezas, recalques, frustrações, taras, dificuldades. O que esperamos em troca? Que eles já tenham resolvido todas essas questões em suas próprias vidas para que possam se concentrar na nossa.

É um delírio, mas ficamos mais descansados assim.

Até que um dia descobrimos, sabe-se lá como, que aquela criatura que parecia acima do bem e do mal é uma pessoa que bebe muito, que não consegue manter relações afetivas por mais de seis meses, que já atropelou um cachorro e fugiu, que sofre até hoje por um grande amor perdido, que tem medo de andar de elevador, que coleciona multas de trânsito, que não fala com um irmão há sete anos.

Isso significa que ele não é feliz? Apenas significa que é mais parecido com um ser humano do que com Deus.

Eis a encrenca: ele não pode ser parecido com um ser humano, ou seja, conosco. Se não resolveu suas próprias tranqueiras, que habilidade terá para lidar com as tranqueiras dos outros? Não admitimos que ele enlouqueça de ciúmes, que tenha vaidades, que guarde segredos, que morra de sono no meio da tarde, que sinta tédio, raiva, claustrofobia. Não pode estar atolado em dívidas, não pode ter um botão faltando na camisa, não pode fumar, não pode atrasar, não pode chorar.

Ele não pode ter uma vida, apenas uma carreira. Tem que fixar residência no consultório e estar sempre a nossa espera de banho tomado e alma lavada. Encontrá-lo com um carrinho lotado de cerveja no caixa do supermercado exigirá de nós muito autocontrole.

Desejamos que nossos terapeutas sejam perfeitos, e é por isso que eles costumam acertar no nosso diagnóstico: no fundo, somos todos uns narcisistas.




Jornal Zero Hora - 04 dezembro 2016



quarta-feira, 12 de outubro de 2016

O AMOR de Kahlil Gibran


O Amor
E alguém disse:
Fala-nos do Amor:

- Quando o amor vos fizer sinal, segui-o;
ainda que os seus caminhos sejam duros e difíceis.
E quando as suas asas vos envolverem, entregai-vos;
ainda que a espada escondida na sua plumagem
vos possa ferir.

E quando vos falar, acreditai nele;
apesar de a sua voz
poder quebrar os vossos sonhos
como o vento norte ao sacudir os jardins.

Porque assim como o vosso amor
vos engrandece, também deve crucificar-vos
E assim como se eleva à vossa altura
e acaricia os ramos mais frágeis
que tremem ao sol,
também penetrará até às raízes
sacudindo o seu apego à terra.

Como braçadas de trigo vos leva.
Malha-vos até ficardes nus.
Passa-vos pelo crivo
para vos livrar do joio.
Mói-vos até à brancura.
Amassa-vos até ficardes maleáveis.

Então entrega-vos ao seu fogo,
para poderdes ser
o pão sagrado no festim de Deus.

Tudo isto vos fará o amor,
para poderdes conhecer os segredos
do vosso coração,
e por este conhecimento vos tornardes
o coração da Vida.

Mas, se no vosso medo,
buscais apenas a paz do amor,
o prazer do amor,
então mais vale cobrir a nudez
e sair do campo do amor,
a caminho do mundo sem estações,
onde podereis rir,
mas nunca todos os vossos risos,
e chorar,
mas nunca todas as vossas lágrimas.

O amor só dá de si mesmo,
e só recebe de si mesmo.

O amor não possui
nem quer ser possuído.

Porque o amor basta ao amor.

E não penseis
que podeis guiar o curso do amor;
porque o amor, se vos escolher,
marcará ele o vosso curso.

O amor não tem outro desejo
senão consumar-se.

Mas se amarem e tiverem desejos,
deverão se estes:
Fundir-se e ser um regato corrente
a cantar a sua melodia à noite.

Conhecer a dor da excessiva ternura.
Ser ferido pela própria inteligência do amor,
e sangrar de bom grado e alegremente.

Acordar de manhã com o coração cheio
e agradecer outro dia de amor.

Descansar ao meio dia
e meditar no êxtase do amor.

Voltar a casa ao crepúsculo
e adormecer tendo no coração
uma prece pelo bem amado,
e na boca, um canto de louvor.

Kahlil Gibran