quinta-feira, 24 de abril de 2014

outro texto maravilhoso da Joana de Vilhena Novaes - sobre tiranias e violências cotidianas que não sentimos/percebemos

SOBRE A TIRANIA DA BELEZA (1)

Como é se sentir invisível e desapercebido na sociedade do espetáculo? Que lugar tem a visibilidade nos dias atuais? E por que isto se constitui num problema para o sujeito contemporâneo?

O presente artigo visa abordar estas questões partindo da premissa que a gordura leva a uma exclusão socialmente validada, fazendo com que aqueles que a experienciam recorram a inúmeras práticas, saudáveis ou não, para fugir do preconceito, da intolerância e em última análise da invisibilidade social.

As recentes, sucessivas e dramáticas mortes de jovens com transtornos alimentares demandam de todos nós uma reflexão mais profunda acerca do que significa a ditadura estética a qual uma parcela significativa de jovens mulheres parece estar submetida. Vale lembrar que, a prevenção destes quadros clínicos é dificultada, sobretudo nos extratos menos favorecidos da população, na medida em que não são entendidos como uma doença, mas como um estilo de vida, socialmente reforçado, como característico das pessoas de sucesso - traduzido muitas vezes no sonho de virar modelo e com isso conseguir: ascensão social, fama, sucesso, visibilidade e dinheiro.

Antes de qualquer análise mais acurada é preciso que fique claro que, óbvia e felizmente, nem todos estamos passivos e submetidos a esta ditadura, uma vez que, como sujeitos de desejo, a singularidade de cada um deve estar sempre presente ao analisarmos um fenômeno da cultura. Generalizações são sempre perigosas e a presente reflexão (até pela profissão da autora) não deixa de lado as saudáveis resistências e a não passividade de todos aos ditames impostos pela cultura do body fitness ou do body modification. Elegemos, também, por uma questão metodológica, uma análise pela via da cultura, enfatizando, contudo, que mecanismos psíquicos, altamente complexos e singulares estão em jogo -, apenas, não os abordaremos neste trabalho.

Não há como deixar de lado o aumento exponencial de casos de anorexia e bulimia (presentes desde a antiguidade) e tentar entender, também por este viés, como as representações da beleza foram mudando ao longo do tempo e seus efeitos no agenciamento da subjetividade.

De desígnio divino ou de limitações anatômicas, a beleza passou a ser um 'ato de vontade', 'de esforço' e um 'denotativo do caráter'. Como aponta Baudrillard, a sociedade de consumo traz a mensagem de que 'só é feio quem quer', "moralizando o corpo feminino" nas palavras do próprio autor. Processo semelhante ocorre com a medicina como veremos mais adiante. Se o corpo até a sociedade industrial era o corpo ferramenta, observamos agora que o mesmo passou a ser o principal objeto de consumo. Das academias de ginástica, dos anabolizantes, esteroides e anfetaminas que são consumidos como jujubas, das inúmeras e infindáveis técnicas de correção corporal, o corpo 'malhado' entrou em cena. Beleza é artigo de primeira necessidade. Mas por ela você pagará um alto preço!

E quais os padrões de beleza da contemporaneidade? Seco, sarado e, definitivamente, magro! Nas palavras de Carla Reston (modelo de 21 anos que faleceu em dezembro de 2006 de anorexia), "vovó eu prefiro morrer a ser gorda". Mas esta fala não é única: "eu sei que vou morrer, mas até lá eu vivo magra", "quando me olho no espelho, não saio de casa", são exemplos de discursos ouvidos ao longo de pesquisas por mim desenvolvidas, bem como em minha prática clínica (2).

Não à toa o termo empregado é 'malhar' - malha-se como se malha o ferro, marca-se o corpo numa busca que, muitas vezes, escapa dos limites do humano, ignora-se o biotipo brasileiro em busca de uma androginia que praticamente anula as características femininas. Também não é acidental que a gíria usada seja 'sarado' -, o que, em realidade quer dizer curado. Mas 'curado' de que? Curado de si mesmo pensamos ser a mensagem subjacente ou ainda, curado da grande fobia social - ser gordo numa cultura lipofóbica!

A medicina moderna, espelhando o imaginário social individualista, culpabiliza o doente pela grande maioria de suas doenças: se seu colesterol é alto, quem manda comer gorduras? Se você é diabético, a culpa é sua por não largar os doces. Está com hipertensão? Ora, mude seu ritmo de vida e leve uma vida menos estressante -, como se isto fosse possível!

Certamente se você for dotado de uma bela voz, pertencer ao mundo artístico e for abençoado com um talento especial talvez escape da discriminação. Contudo, de forma alguma isto invalida o argumento de que somos profundamente cruéis com aqueles que fogem dos padrões estéticos definidos como ideais.

Qualquer menina gordinha vai poder relatar as incríveis maldades que sofreu na escola,(o bullying está aí para nos provar a veracidade da afirmação), os apelidos horríveis que lhe foram dados e, frequentemente, como se sentiram excluídas. Mais grave ainda, somos absolutamente tolerantes com esta forma de discriminação. Como aponta Maisonauve (1981) em seu livro, a gordura é a forma mais socialmente validade de preconceito o que nos permitir criticar as pessoas gordas atribuindo-lhes a culpa por sua condição - , tema amplamente desenvolvido em meu livro.

Não se trata aqui de culpar esta ou aquela agência de modelos - ideal de tantas meninas, mas de refletir como o corpo tornou-se um objeto persecutório para grande parte das mulheres. Do sonho de Cinderela surge com freqüência a perseguição da Moura-Torta.(Novaes 2001)

Em um interessante trabalho intitulado O Belo e a Morte, Medeiros (2005) vai destacar o lugar do corpo na vida psíquica das mulheres, como algo, nada trivial. Segundo o autor:

"este é o palco e o cenário que descortina um drama tão antigo e arrebatador quanto as epopéias. Não por acaso foi a beleza de uma mulher, a causa da Ilíada, do destino dos Argonautas e do triunfo de Ulisses em sua Odisséia.
Mas se o corpo é o palco deste drama onde o sujeito feminino interpreta sua inquietação diante das vicissitudes da beleza, quem estaria na platéia? Para quem ele representaria sua dor? De quem ele teria prazer em ouvir aplausos? "(pg 167)

Se há, felizmente, as que escapam, não podemos negar que temos uma longa tradição de negar nossos preconceitos - construímos em nosso imaginário a idéia de que não somos violentos, não somos racistas e somos extremamente cordiais. Isto nos levou a esta profunda situação de desigualdade em que nos encontramos. Ao invés de enfrentarmos o que de preconceituoso existe em nós, afirmamos nossa individualidade dizendo tratar-se de casos isolados e que, em realidade, não existe o preconceito.

Ora, sabemos que existem concursos que já estão solicitando o IMC (índice de massa corporal) de seus candidatos e que inúmeras empresas não contratam pessoas gordas - certamente a alegação é outra, mas o raciocínio segue pela seguinte linha - como a gordura é apenas uma questão de 'força de vontade', deixando-se de lado todos os outros aspectos envolvidos - da genética ao psíquico -, atribui-se ao sujeito a impossibilidade de agenciar seu próprio corpo. Ora, se você não é capaz de gerir sua própria vida com competência, como o fará em seu trabalho? E se o leitor pensa que estamos tratando apenas dos casos de obesidade engana-se. Após 10 anos de pesquisa, tendo entrevistado em torno de 100 mulheres (tema de minha tese de mestrado e doutorado pela PUC-Rio), agora transformada em livro (Novaes 2006) e trabalhando em um serviço que trata, exatamente, de pessoas com distúrbios relativos à imagem corporal, não posso deixar de reafirmar a intolerância (real ou imaginária) que grande parte destas mulheres relata.

Não ter visibilidade social ou ser visto de forma negativa/pejorativa no imaginário social são os dois lados da mesma moeda, qual seja: retirar do sujeito uma das condições fundamentais para que o mesmo tenha garantida a sua cidadania, bem como sua saúde psíquica. Pois bem, é notória e consensual no campo das ciências humanas e sociais a afirmação sobre os riscos que corre o ser humano caso seja privado do contato e da interação com seus pares ou tenha a sua mobilidade nos espaços públicos e de sociabilidade limitada - todas experiências que conferem certa dose de reconhecimento da alteridade em relação ao sujeito.(Novaes e Vilhena,2003).

A situação fica ainda mais dramática numa cultura imagética como a nossa, onde, nos grandes centros urbanos, a visibilidade, reconhecidamente, assumiu um lugar de prestígio na obtenção do reconhecimento. Chegando ao ponto de podermos afirmar que este reconhecimento legitima/reitera para o sujeito a confirmação de sua existência, tirando-o, dessa forma, do anonimato da metrópole. A ausência do sentimento de pertencimento e a angústia da invisibilidade podem levar a uma experiência de aniquilamento da existência fazendo com que o sujeito se sinta excluído do todo social, como um pária que não participa das regras do jogo, cujo final, indubitavelmente, resulta numa experiência muito dolorosa para o sujeito. Existir é, antes de mais nada, apresentar a imagem para o Outro.

Mas retomemos os inúmeros distúrbios na imagem corporal - o crescente aumento da 'vigorexia' nos homens (situações onde jamais atingem o corpo ideal, percebendo-se sempre franzinos) apontam para a prevalência de uma estética 'apolínea' que em muito nos faz lembrar o filme de Leni Riffenstal Arquitetura da Destruição. Temos aqui, os ideais estéticos nazistas que apregoavam a perfeição dos deuses e a eliminação de tudo aquilo que era considerado 'imperfeito'. Sabemos aonde isto nos levou.

Quem define o 'imperfeito' - quem determina a estética? O mercado? O mercado não é uma entidade em si mesma - ele é construído e apoiado em todos nós. Estamos, pois, no terreno da ética.

Termo bastante complexo, no momento, vou tomá-lo pela via da tolerância. Tolerância não no sentido de suportar, mas de acolher o diferente, a diversidade e o respeito ao outro.

Nada trará de volta as jovens (e, infelizmente, as que mais virão!) nem eliminará o horrível sofrimento de suas famílias - por isto mesmo temos uma dívida com elas. Denunciar o preconceito e as inúmeras pressões a que tantas mulheres e jovens são submetidos; parar de banalizar Ana e Mia (anorexia e bulimia nas páginas do Orkut). Longe de amigas, Ana e Mia são presenças mortíferas na vida de tantas jovens; questionar a sociedade em que vivemos onde o consumo desenfreado leva-nos, frequentemente, a abdicar de valores que sempre sustentaram nossa integridade; gritar cada vez mais alto que cada um de nós é dono de seu corpo e que este foi feito para nos servir e não para nos aprisionar. Enfim, reconhecer na diferença do outro a sua riqueza e singularidade, uma vez que é esta diferença que enriquece nosso convívio em sociedade.



NOTAS:

(1) Texto apresentado no Debate sobre a Tirania da Beleza na Casa do Saber em Dezembro de 2006.

(2) Para a elaboração de minha dissertação de mestrado e tese de doutorado pesquisei cerca de 100 mulheres buscando investigar qual a importância dada à estética corporal e quais as técnica utilizadas em busca de um corpo considerado "adequado" aos parâmetros atuais de beleza. (Novaes 2000, 2004)


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

BAUDRILLARD, J. A SOCIEDADE DE CONSUMO, Edições 70, SP, [1970] 1981.

DEBORD, G. A SOCIEDADE DO ESPETÁCULO. Rio de Janeiro: Contraponto,1997

MAISONNEUVE, J. MODÉLES DU CORPS ET PSYCOLOGIE ESTHÉTIQUE. Paris. Puf. 1981

MEDEIROS, S. O BELO E A MORTE.Tese de doutorado, Dept de Psicologia.Rio de Janeiro, PUC-Rio

NOVAES, J.V. PERDIDAS NO ESPELHO?SOBRE O CULTO AO CORPO NA SOCIEDADE DE CONSUMO. Dissertação de Mestrado. Dept de Psicologia. PUC-Rio. (2000)

NOVAES, J.V. Mulher e beleza: em busca do corpo perfeito. Práticas corporais e regulação social. In: TEMPO PSICANALÍTICO, Rio de Janeiro, SPID. 2001. n.33. pp:37-54.

NOVAES, J.V. (2003) Da cena do corpo ao corpo em cena.Estética feminina e cirurgia plástica. In CASTILHO, Katia; GALVÃO, Diana. (Org.). A MODA DO CORPO O CORPO DA MODA. São Paulo.

NOVAES, J.V. SOBRE O INTOLERÁVEL PESO DA FEIÚRA. CORPO, SOCIABILIDADE E REGULAÇÃO SOCIAL. Tese de Doutorado. Dept de Psicologia. PUC-Rio. (2004).

NOVAES, J.V. O INTOLERÁVEL PESO DA FEIÚRA. SOBRE AS MULHERES E SEUS CORPOS. Rio de Janeiro, Ed PUC/Garamond

NOVAES, J.V. & VILHENA, J.(2003) Las enfermedades de la belleza: acerca de lo intolerable de la fealdad. PSICOANÁLISIS Y EL HOSPITAL. Buenos Aires. Ed Psichos. v. 12, n. 24, pp. 38-43.  

retirado daqui
http://www.polemica.uerj.br/pol18/oficinas/lipis_4.htm

segunda-feira, 21 de abril de 2014

SOBRE A DOMESTICAÇÃO DA VIOLÊNCIA E A MANIPULAÇÃO DO ASSIM CHAMADO PADRÃO DE BELEZA, ou O USO DOS CORPOS COMO FERRAMENTA PARA MOLDAR INDIVÍDUOS NÃO PENSANTES - I

quase dois meses sem postar, meio desanimada, vendo mais filmes que lendo, se bem que não deixo de ler nunca, meu vício e minha paixão... 
aí fico gripada no meio do feriado de Páscoa, e tchan, deixo de viajar na boa pra ler trocentas mil coisas acumuladas, tantas que o tempo é pouco pro muito e tanto que quero, e muito mais ainda que vai ficar na pilha dos "pra ler depois"... 
piora muito pq acabei de comprar mais 5 livros no estante virtual... qd me pedem livros emprestados, hj em dia, praticamente não tenho mais quase nada pra que não seja coisa que estudo, percebo que quase não leio mais romance, ficção, ainda um pouco de poesia, que é coisa nova pra mim, - fui mais afeita textos cursivos, densos, pra ser ler poesia há que ser outro tempo, que pra mim é novidade -, é tudo livro de Psicologia, Antropologia, Filosofia, Sociologia... - e não é todo mundo que gosta de leitura assim, tão específica, e rio pra mim mesma - que ponto chega o "#cerumano", assim caminha a humanidade, tempo de ócio criativo, sem silêncio a gente não pensa, não cria, não entende, não processa, não elabora... 
gosto das minhas solidões e dos meus silêncios...
eles não são vazios, muito pelo contrário, são ricos, profundos, visceralmente vividos e plenamente cheios...
como tudo que posto, vou montando minha colcha de retalhos que molda meu sentir e meu pensar, ajudando a construir quem eu sou.
=)

super curti e por isso compartilho aqui esse texto, de uma grande reflexão, grande autora! não conheço pessoalmente, só vi em entrevistas pela TV, mas gentem... escreve super bem, essa mulher têm DOIS PÓS DOCs, SABE LÁ O QUE É ISSO????
tem o meu respeito!!!!


BATEU, LEVOU! O QUE DIZEM OS LUTADORES DE MMA(1)


JOANA DE VILHENA NOVAES é Psicanalista. Pós-Doutora em Psicologia Médica (UERJ). Pós-doutora em Psicologia Social (UERJ). Doutora em Psicologia Clínica (PUC-Rio). Coordenadora do Núcleo de Doenças da Beleza do Laboratório Interdisciplinar de Pesquisa e Intervenção Social, LIPIS da PUC-Rio. Pesquisadora correspondente do Centre de Recherches Psychanalyse et Médecine - CRPM-Pandora. Université Denis-Diderot, Paris VII. Autora dos livros: O intolerável peso da feiúra. Sobre as mulheres e seus corpos. PUC/Garamond (2006). Com que corpo eu vou? Sociabilidade e usos do corpo nas mulheres das camadas altas e populares. Pallas/PUC (2010). Corpo pra que te quero? Usos, abusos, desusos. Em co-organização com Junia de Vilhena.  Appris/PUC (2012). www.joanadevilhenanovaes.com.br E-mail: joanavnovaes@gmail.com


Resumo: Partindo do recente fenômeno de popularização do vale-tudo no Brasil, o artigo tem  como objetivo investigar as representações sociais em torno dessa prática esportiva. Através da escuta de lutadores de MMA buscamos entender uma prática que, cada vez mais, ganha adeptos, admiradores bem como críticos ferrenhos.

Palavras-chave: corpo, disciplina, violência, visibilidade e identidade.

KNOCK OUT! WHAT DO THE MMA FIGHTERS SAYS
Abstract: The article aims to investigate the social representations of the practice of MMA in our society. By listening MMA fighters we seek to understand a sport that, increasingly, gains fans, admirers and critics of all kinds.
Keywords: body, discipline, violence, visibility and identity.

INTRODUÇÃO
Partindo do recente fenômeno de popularização do vale-tudo no Brasil, o artigo tem como objetivo investigar as representações sociais em torno dessa prática esportiva. Através da escuta de lutadores de MMA buscamos entender uma prática que, cada vez mais, ganha adeptos, admiradores bem como críticos ferrenhos. O que significa um corpo que não sabe o que é viver sem dor e no qual a disciplina é assimilada através da luta, foi algumas das indagações que nortearam esse estudo.
Parte de uma pesquisa mais extensa, buscamos, neste trabalho, apresentar de forma bastante resumida, alguns dos resultados que julgamos mais relevantes.
Conforme demonstraram nossos entrevistados, nesse universo o corpo é uma moeda de troca valiosa e devidamente adestrado através de um rígido controle de si, leva à ascensão social.
Além disso, verificou-se que essa prática corporal constitui um importante meio de sociabilidade, contribuindo para a formação de um universo bastante hierarquizado, no qual a transmissão da técnica corporal reforça a construção identitária masculina. Finalmente, desse estudo também derivou uma discussão, bastante polêmica, sobre o estatuto que as práticas de combate assumem no imaginário social: tratar-se-ia, pois, de uma violência gratuita espetacularizada ou destino biológico?

Chegando de mansinho: sobre o reconhecimento do território
O contato com uma academia de MMA (prática que condensa múltiplas artes marciais) é impactante sob vários aspectos: o primeiro é através do olfato, uma vez que a primeira impressão que toma literalmente, de assalto qualquer estrangeiro ao meio, é o forte odor de suor potencializado pela adesão à uma dieta rica em proteínas que muitos desses lutadores fazem uso antes das competições. Esses ambientes rescendem à testosterona, e é justamente ela que nos recepciona fazendo a devida introdução ao universo pesquisado! 
Embora a apresentação do ambiente não seja das mais convidativas, após um tempo no local, percebo que os lutadores constituem um grupo bastante coeso, algo da ordem de uma fratria, irmandade ou mesmo uma família-, ou seja, uma prática cuja disciplina promove o sentimento de pertencimento e que por isso faz com que o sujeito sinta-se acolhido. Pertencimento, aliás, é o sentimento que permeia as diferentes falas como veremos adiante.
Difícil não sentir alguma dose de desconforto em um campo impregnado de significantes tão fortes! Afinal, como nos lembra Bourdieu (1980), - transgressão tem a ver com domínio e sentir-se a vontade está diretamente relacionado a ter familiaridade com as regras do jogo.
Em uma perspectiva sociológica, o “outro” só passa a ser considerado objeto de aceitação ou negação a partir de determinado grau de conhecimento, formulado a priori e numa relação de proximidade (física, cognitiva e moral). O “estranho”, neste caso, é representado pelo “outro-diferente” e pela falta de conhecimento objetivo sobre ele. No entanto, o “estranho”, como já apontava Freud (1919), não é apenas uma representação daquilo que desconhecemos no outro, mas principalmente daquilo que desconhecemos em nós mesmos-, ou ainda, que não queremos reconhecer em nós mesmos. Na ausência de referências, qual seria então a moeda de troca?
Tanto na clínica quanto na prática de pesquisa, aprendi que uma escuta atenta, sensível e acurada pode nos servir de múltiplas formas. Oferecer uma escuta significa valorizar, conferir status ao sujeito e confirmar sua importância. Em um ambiente altamente hierarquizado, coeso e no qual submissão e respeito são palavras de ordem, lição depreendida em uma visita anterior ao universo do jiu-jítsu, esse conhecimento me foi útil para tentar adequar a minha aproximação naquilo que supus fosse, em princípio, um ambiente hostil. Nada mais respeitoso que dar a palavra a quem se dispõe a conosco conversar.
“O treino é duro, tem que ter disciplina até criar resistência, mas somos todos parceiros, temos cumplicidade e respeito, pois isso aqui acaba sendo uma grande família, vira tudo brother, a equipe serve para dar suporte e tem o mestre que nos transmite os seus ensinamentos a cada treino”. (B.6)

Trocando em miúdos: notas sobre o campo e seus personagens
Todo pesquisador tem uma dívida com seus entrevistados e com o conhecimento que produz. Penso ser esta uma prática bastante violenta. Contudo, apesar do preconceito, falta, antes de prosseguir, registrar o meu reconhecimento ao tempo despendido por todos os meus entrevistados nos inúmeros encontros que tivemos.
Ainda que não me tenha sido solicitado, optei por não identificar meus entrevistados à exceção de Giovanni Tonzano(2), dono da Academia Coach, em Copacabana e Claudio Coelho da Academia Nobre Arte, no morro do Cantagalo. Busquei, ainda, retirar qualquer coisa mais específica que pudesse identificar os sujeitos sem, entretanto, prejudicar a essência do que me estava sendo transmitido. Este cuidado, talvez excessivo para muitos, redunda não apenas de minha experiência clinica, como da preocupação em preservar a privacidade dos entrevistados-, sejam eles publicamente conhecidos ou não.

UM CORPO QUE DÓI: HABITUS, RESISTÊNCIA E ADESTRAMENTO
Conforme apontam White, Young & Mcteer (1995), é através dos treinos que o sujeito masculino vai sendo modelado. É também no treinamento que o corpo assimila a disciplina, dando ao atleta o controle de si como tão bem sinalizou Foucault (1985), ao discorrer sobre as tecnologias do eu, relações de controle e domínio em sua genealogia do poder.
Com as técnicas corporais incorporadas e o domínio do corpo, os lutadores adquirem uma valiosa estratégia/capital contra os seus oponentes. Aprendem a controlar a dor, superá-la, neutralizá-la e até mesmo dissimulá-la. Suportam e convivem com a mesma de forma tão intensa e constante que, na sua ausência, desconfiam não estar desempenhando o seu papel corretamente, como nos mostram as falas dos nossos entrevistados, sugerindo estranhamento ao treinar sem dor.
“Vivo com dor, assim é a vida de um atleta e quando não é assim até estranho e desconfio que não ando treinando direito (risos). Treino em média umas oito ou nove horas por dia e nas semanas que antecedem as competições uso o meu corpo até o limite, chego em casa, como, tomo banho, dou um beijo na minha mulher e desmaio exausto, as vezes chego e ela já tá até dormindo, mas é o meu instrumento de trabalho, meio de sustento e a razão de ter conquistado tudo na minha vida até agora. Tá vendo aqui (apontando para o bíceps) faço muita fisioterapia e treino com dor direto, por isso vim enfaixado e com a tipóia.( B.1,  33 anos, lutador de UFC – BTT).

VALE QUANTO PESA: CORPO, DISCIPLINA E CONTROLE DE SI
Das falas apresentadas estas talvez sejam as que mais guardem semelhanças com o campo das academias de ginástica freqüentadas por mulheres de classe média alta. Em estudos anteriores, (Novaes, 2001; 2006; 2007; 2011) ao falar sobre os usos do corpo na sociedade de consumo/cultura carioca, enfatizei a crescente relação persecutória com a balança que fazia, muitas vezes, da malhação o sintoma de uma profunda insatisfação com a própria aparência. Esse desconforto espelhava um agudo sofrimento psíquico que era potencializado pelo horror à gordura do qual somos todos testemunhas.
“O momento da pesagem é tenso, é a única hora em que não gosto e me arrependo de ser um lutador profissional. Chega umas três semanas antes da luta e o corte tem que ser muito radical, tipo assim porque você as vezes tem que perder doze quilos e senão perder é penalizado e não luta. Vai chegando perto da luta o treino intensifica e você vai ficando mais ansioso porque sabe que tem que perder.... é sinistro. Lembro uma vez em Brasília que simplesmente não conseguia enxugar o que precisava pra minha categoria, estagnei no peso, por causa do clima seco eu praticamente não suava nos treinos, por mais que me enchesse de roupa feito hoje   aqui, por exemplo, que estou usando duas camisetas, uma até de manga comprida, que é para aumentar o gasto calórico e eu poder comer algum carboidrato” (B.2)
“Pô essa parte da dieta antes da pesagem é f..... é muita restrição, uma semana antes da luta chego a sonhar com Mc Donald, rola uma fissura mesmo, porque chega assim uns dois, três dias antes da pesagem e é só dieta líquida, isso porque nessas semanas que antecedem você já é obrigado a ir cortando sal ,açúcar, leite e termina só na proteína mesmo. A dieta, antes do combate, talvez seja o que exija mais autocontrole, disciplina e privação do profissional”  (B.4)
Não pude deixar de recordar a fala de uma de minhas primeiras entrevistadas, na época com 16 anos e que me disse: “Não vejo a hora de ficar velha para poder comer uma macarronada sem culpa”. (Novaes 2001:43) Tantos anos se passaram, entrevisto agora pessoas tão diferentes e a sensação da balança perseguindo permanece a mesma!

CORPO: IDENTIDADE, INVESTIMENTO E CONSUMO
Segundo Rodrigues (1986), o corpo, em uma civilização de abundância industrial, tem uma nova tarefa. Ainda que não seja mais um corpo-ferramenta deverá ser um corpo consumidor, individualizado, livre e, sobretudo, cuidado.
Para Rodrigues (op.cit) é fundamental entendê-lo para podermos falar no corpo liberado. Inadequado para as fábricas, para que servirá este corpo moderno?
Não há como ignorar o vetor financeiro uma vez que a indústria da luta (Culto ao corpo, consumo de insumos esportivos + produção e veiculação de imagens violentas que geram altos índices de audiência) vem demonstrando ser bastante lucrativa, movimentando cifras bastante altas, agora disputadas pela grande mídia televisiva que busca deter os direitos de exclusividade de exibição dos combates de MMA. Dentre eles o UFC é o campeonato de maior prestígio, considerado a elite no universo das lutas.
Um capital, ou um tipo de capital, é aquilo que é eficaz em um determinado campo. É ao mesmo tempo a arma e o que se disputa, o que permite a seu detentor exercer poder, influência, e, portanto, existir em determinado campo, em vez de ser uma simples quantidade negligenciável. No trabalho empírico é uma só e mesma coisa determinar o que é campo, seus limites, os tipos de capital atuantes, qual alcance de seus efeitos, etc. Vemos que as noções de capital e de campo são estreitamente interdependentes.(Bourdieu,1980:4).
Trata-se, assim, do corpo como valor e moeda de troca –, capital.
“Se a luta não tivesse me dado a oportunidade de ganhar o mundo e ter mobilidade social talvez estivesse envolvido com o mundo do samba, da malandragem, porque eu ia sempre nos ensaios, meu pai, que é alfaiate, é um cara bem conhecido nesse meio, sei lá.... tenho muito orgulho da minha origem, mas sei que de onde eu vim é preciso ter sagacidade pra sobreviver e se dar bem e a luta me deu isso, viajei, comprei e conquistei coisas... nem sei onde eu estaria se não lutasse e  praticasse o bem.” (B.1)
“Foi com a luta que eu consegui a segurança que não tinha quando era mais novo, quando te disse que era um adolescente inseguro por conta dos meus pais serem separados. Acho que os treinos te dão isso, ele te exige persistência e obstinação para não desistir dos seus objetivos, te dá força, torna o cara resistente é o que eu sempre procuro passar para os meninos da minha equipe. A luta te prepara para ser um ganhador, te faz encarar melhor as revanches da vida, mas ao mesmo tempo te ensina, física e emocionalmente, a suportar melhor as derrotas.” (B1)
“A luta foi muito importante na minha formação, ela ajudou a formatar a minha personalidade e o meu caráter como homem, reforçando valores como a hombridade e o respeito. Além disso, me deu autonomia financeira, reconhecimento, notoriedade e visibilidade até eu poder criar a minha equipe e passar para eles a minha técnica” (B.6)
Nesse sentido, ao falar da formação identitária dentro de grupos sociais específicos, o pensamento de Cecchetto (2004) parece estar bem afinado com a fala do nosso entrevistado, no tocante ao fato dos esportes de combate potencializarem habilidades baseadas na resistência e na técnica. Esses atributos comparecem no discurso dos lutadores através da crença de que buscar a vitória nos combates, interfere na própria formação, fazendo com que o sujeito desenvolva características de personalidade, tais como a tenacidade e a obstinação.

DE VOLTA À ARENA ROMANA: VIOLÊNCIA GRATUITA OU DESTINO BIOLÓGICO?
Segundo Jurandir Freire Costa (1985), a violência pode ser definida pelo desejo de humilhar e degradar o outro. É porque o sujeito violentado (ou o observador externo) percebe no sujeito violentador o desejo de destruição (desejo de morte, de fazer sofrer) que a ação agressiva ganha o significado de ação violenta. Não existe violência sem desejo de destruição. A violência definida como agressividade e equiparada a um impulso instintivo e termina por ser trivializada.
Escolhemos a definição do autor para iniciar o que talvez seja a categoria de análise mais polêmica desse estudo, já que a não é mistério a crença de muitos e o discurso partilhado por outros tantos acerca das lutas como um exercício de violência gratuita e espetacularizada: a volta à arena romana.
Relendo o texto freudiano, ao mesmo tempo em que traz as concepções de Hanna Arendt sobre a relação da violência com o poder, Costa (op.cit) vai nos conduzindo ao caminho da violência como desejo, jamais como algo “irracional” ou da “natureza humana”.
Para o autor a banalização da violência é, talvez, um dos aliados mais fortes de sua perpetuação A resignação de que somos "instintivamente violentos" faz com que o homem se curve a uma inexorabilidade igual à da morte. Faz dela seu "destino biológico" ou o princípio e o fim de seu destino psíquico, social ou cultural. Não há, portanto, violência instintiva, porque falar de violência é falar de uma intenção de destruir.
Violência é, então, o emprego desejado da agressividade, com fins destrutivos. A irracionalidade do comportamento violento deve-se ao fato de que a razão desconhece os móveis verdadeiros de suas intenções e finalidades. Esta definição nos será útil ao interpretarmos as falas de nossos entrevistados.
Em suas falas percebemos como a “violência da luta” não é, de forma alguma, percebida como um ato violento - quando muito, trata-se de agressividade inerente a todo ser humano.
A argumentação é a da existência de inúmeras regras e normas que, caso não respeitadas, penalizam o lutador, impedindo/balizando os chamados impulsos violentos que possam, por ventura, partir deles. Ou seja, o argumento da “gratuidade, violência e barbárie” é combatido em face de existência de uma lei.
“A maioria das pessoas acusa o vale-tudo de ser um esporte violento, mas desde os gregos todo mundo adora ver porrada – foi e sempre será assim. É o institnto animal que todo homem tem. Não é violência é agressividade, luta pela sobrevivência, a parada é biológica – violência é estuprar, roubar, matar –  o MMA é um esporte, tem regras que se não forem respeitadas o combate é interrompido na hora visando preservar a integridade física dos atletas”. (Giovanni)
"Essa imagem que as pessoas têm do lutador porradeiro, marginal e bandido é que estigmatiza a gente! Você veio aqui entrevistar a gente com essa ideia também? Acha a mesma coisa que apareceu outro dia na matéria da Rede TV? Essa imagem tem a ver com aqueles pitboys de classe média, zona sul, na década de noventa que ficavam deslumbrados com as técnicas que aprendiam com o jiu-jitsu e saíam brigando em boite”.(B.1)
Outro argumento bastante utilizado nas respostas dos lutadores e treinadores entrevistados foi a menção à teoria Darwiniana na intenção de dar sentido à prática esportiva desses embates. A noção evolucionista de que somente o mais forte e apto deve sobreviver, parece pautar a lógica desse campo - a luta reproduziria, assim, o show da vida na sua luta pela sobrevivência: que vença o mais forte!
“Mas acho que na luta é como no reino animal, sobrevive o mais forte, o mais apto. Na verdade com a evolução da espécie humana também foi assim, não mesmo? Prevaleceu o mais resistente, o mais sagaz, o mais forte...."(B.3)
Para Hanna Arendt o argumento que faz da agressividade instintiva, do "componente animal no homem", a causa da violência, baseia-se numa redundância do tipo "o homem comporta-se como um animal porque é um animal". Segundo a autora:
Para saber que o povo lutará por sua pátria não precisamos descobrir instintos de territorialismo nas formigas, peixes e macacos; para aprender que a superpopulação resulta em irritação e agressividade, não temos que fazer experiências com ratos. Basta passar um dia nos cortiços das grandes cidades (1979:139).
Sobre o imaginário popular e as representações sociais das artes marciais nas classes populares nos fala Claudio Coelho, - dono da academia de boxe Nobre Arte e responsável por um projeto social (e de vida) que tem como objetivo ensinar essa prática esportiva aos jovens daquela comunidade. Com seu tom de voz quase sempre gritado, denotando aspereza e calejamento, o treinador combate a noção de violência gratuita que é atribuída ao esporte, revelando que a luta pode configurar uma das estratégias de sobrevivência em um território que não dá a todos as mesmas chances de competitividade e, portanto, possibilita aos jovens encontrar no esporte, muitas vezes, uma possibilidade de vencer as adversidades.
“As pessoas acusam a luta de ser um troço violento, achavam que era coisa de marginal. Violento é o mundo, isso aqui é a saída do inferno, que a vida por aqui pode se tornar para muitos desses meninos. Poderia te contar uma infinidade de histórias de meninos que a luta fez renascer. Vou lhe ensinar uma coisa, aqui funciona assim, minha querida: no asfalto, quando algo dá errado em casa, a meninada sai dando porrada na rua, aqui, dá em tiro mesmo, é pá, pum, vacilou dançou, não tem essa de trabalho comunitário não, é cadeia mesmo – é a lei do cão. É por essas e outras que a cada. menino que conseguia tirar do tráfico era uma vitória, um assalto ganho na luta. Vir aqui lutar para esses meninos não significa aprender a sair dando porrada a torto e a direito, significa passar a ter alguém que se preocupa e se interessa pela vida daquele moleque, que muitas vezes é caótica, sem perspectiva. É também e, acima de tudo, passar a ser enxergado, por isso que eu grito e cobro, dentro e fora do treino. É também obriga-los a frequentar a escola antes de treinar, eu tenho esse dever com a formação deles, muitas vezes eles chegam aqui meio gente, meio qualquer coisa e saem homens, esse é o meu maior orgulho!. O garoto passa a ter aqui, uma família estruturada e pai de verdade, que ama, cobra, grita e tem que ser duro, as vezes implacável e muito agressivo. Eu falo a língua deles porque vim do mesmo lugar e sei que mundo aqui em cima é mais duro, dói e cria feridas, para sobreviver tem que ser casca grossa! -  tenha sempre isso na cabeça quando for escrever essa sua pesquisa aí”. (Claudio Coelho)
Conforme pudemos observar, aqui o argumento da lei é novamente trazido à tona. Entretanto, ao invés de remeter às rígidas regras do universo esportivo, em função de demandas e carências inerentes ao meio, parece cristalizar-se na figura do treinador que assume uma função paterna organizadora. Nesse novo código interpretativo, o limite imposto pela disciplina é interpretado como um amor que retira crianças e adolescentes de um universo precário, muitas vezes de desamparo absoluto e no qual a estratégia de sobrevivência são as redes de solidariedade. Não à toa, uma das primeiras inscrições que é possível ler nas paredes da academia do Cantagalo, refere-se ao fato da solidariedade ser um esporte coletivo, - sentimento que posto em prática e vivenciado pelo sujeito, ameniza a dor de outro tipo de violência, bem como de toda sorte de privação, dessa vez não somente concretas, mas sobretudo, simbólicas!

Considerações finais
Ao final da pesquisa realizada não me tornei uma fã das lutas e, certamente, creio que há outras formas de inserção, reconhecimento, visibilidade e ascensão - poucas é verdade. Ainda vejo a luta como extremamente violenta e lamento que sua espetacularização reflita tanto os tempos em que vivemos.
Mas, se há algo que venho aprendendo nestes anos em pesquisas de campo é que se não tivermos uma escuta atenta e respeitosa perderemos o que há de singular e único em cada um de nossos entrevistados. Isto não significa deixar de ser crítica. A grande maioria de meus entrevistados, mesmo na brutalidade de seus ofícios como lutadores, sempre demonstrou uma imensa delicadeza e atenção para com todos no seu entorno (fora da luta - é obvio!) e um profundo respeito com as regras estabelecidas. Sejam elas as da luta sejam as de minhas entrevistas.
Não há dúvida que a luta, com tudo o que esta implica (grupo, regras, disciplina, valorização e recompensa) foi um fator redentor e/ou de mudança e/ou salvação para muitos destes homens; assim eles nos falam todo o tempo. Nesse sentido suas falas espelham o imaginário social sobre o “Lutador Ideal”, revelando elementos, aparentemente, consensuais sobre essa figura.
Os esportes de combate, com ou sem armas, evocam uma habilidade baseada na força e na técnica, atributos que seus praticantes acreditam que devem possuir e adquirir para construir socialmente sua masculinidade. Demonstrar tenacidade e determinação seriam os aspectos exigidos dos homens ao buscar a vitória no combate, valores também conhecidos como "garra" ou força de vontade para vencer (Cecchetto, 2004, p. 142).
Igualmente digno de nota é a importância do grupo e da relação coesa entre seus membros, na transmissão dessas representações. Os valores, as normas e a própria percepção do que significa ser um lutador é assimilada e reiterada, cotidianamente, na prática (treinos), através da introjeção e aceitação da hierarquia e a partir da transmissão dos ensinamentos por parte dos lutadores mais experientes em relação aos mais novos, conforme demonstra a fala de todos os entrevistados que afirmam o papel da luta na formação da personalidade, do caráter e da masculinidade.
Mas é a fala de Claudio Coelho(3) que me toca de forma muito singular. Isso aqui é a saída do inferno que a vida por aqui pode se tornar, para muitos desses meninos. Penso que não sem razão me lembrei das palavras de Simone Weil acerca do desenraizamento. Ser é pertencer e para pertencer é preciso acreditar que vale a pena criar raízes. Infelizmente, tal só é possível através da demonstração do interesse, por parte de alguém ou de um grupo, no estabelecimento e manutenção desses vínculos em relação ao sujeito. Nesse sentido, alguém que fale a mesma língua e use o mesmo código, converte-se em um solo fértil para que as raízes possam ser fincadas.
E aí permanece minha indagação: será apenas através da luta que a disciplina, o grupo, a visibilidade social, a ascensão e o pertencimento serão possíveis?

NOTAS:
(1) Trabalho apresentado no V  Congresso Internacional de Psicopatologia Fundamental, realizado em setembro de 2012. Fortaleza.
(2) Devo a Giovanni grande parte de minhas entrevistas e a inserção mais facilitada no mundo da luta.
(3) O boxe constitui uma das modalidades de luta presentes nos treinos de MMA. Para uma descrição mais detalhada do projeto e dos vários depoimentos, ver (Novaes, 2012).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Ceccheto, F. R. (2004). Violência e estilos de masculinidade. Rio de Janeiro: FGV.
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