quarta-feira, 25 de julho de 2012

"é mais fácil desintegrar um átomo do que um preconceito”

PSICOFOBIA, quem já ouviu falar disso?
ou câncer, ou apêndice supurado, ou uma perna imobilizada?
então, esse artigo é pra entender as diferenças entre essas coisas...


Por Antônio Geraldo da Silva, presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP).
Publicado no jornal “O Globo” de 24/06/2012, e disponível no site da ABP.
http://abp.org.br/mail/opiniao_o_globo.jpg


No desembarque do aeroporto JFK, em Nova York, no começo deste ano, o outdoor que recebia milhares de pessoas diariamente não trazia nenhuma bela foto da cidade ou mensagem de boas vindas. O que os viajantes encontravam era uma enorme propaganda com a mensagem:


“Relaxe, vai passar, isso é temporário… Se você não diz isso sobre o câncer, também não diga sobra a depressão”.

A ironia desconcertante da publicidade reflete muito da imagem que alguns transtornos mentais ainda recebem por parte da sociedade: para alguns, um destempero; para outros, uma fraqueza. Mas a depressão é um transtorno mental dos mais graves e incapacitantes.  Dentre as dez principais causas de afastamento do trabalho em todo o mundo, cinco são decorrências de transtornos mentais. A depressão aparece em primeiro lugar.

Para 46 milhões de brasileiros, segundo dados do Ministério da Saúde, a depressão é uma realidade: 20% a 25% da população já tiveram ou têm depressão ao longo da vida.  A incapacitação profissional, a falta de interesse e de motivação para participar de atividades sociais rotineiras e de ter prazer nas coisas que gostam e com as pessoas que amam transformam dramaticamente o cotidiano dessas pessoas, o de seus familiares e amigos, trazendo consequências devastadoras. Essa falta de capacidade de se relacionar tem efeitos profundos e duradouros, que dificultam a reinserção social dos que tentam se recuperar de um episódio de depressão.

Paradoxalmente, ao mesmo tempo em que a depressão e os demais transtornos mentais atingem a muitos brasileiros, o preconceito em torno deles é crescente na sociedade. Já é hora de combater essa discriminação, como atualmente já se faz com os homossexuais, os negros e as mulheres. A expressão psicofobia expressa justamente o nefasto preconceito contra os doentes mentais e os portadores de deficiência.

Se não se deve debochar ou subestimar de doenças como o câncer, conforme apontou o outdoor no aeroporto americano, também não há razão para as doenças mentais não serem encaradas com a seriedade que elas pedem e seus portadores exigem.  Inclusive pelos próprios profissionais de saúde.

Há várias formas de preconceito, entre elas a própria negação da doença como algo menor ou passageiro.  Como disse Albert Einstein, lamentando a triste época em que vivia, “é mais fácil desintegrar um átomo do que um preconceito”.  
Em pleno 2012, ideias preconceituosas devem ser combatidas com veemência. É chegada a hora de a sociedade olhas com maturidade e respeito para os portadores de transtornos mentais. 
Psicofobia é crime.

Por Antônio Geraldo da Silva, presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP).
Publicado no jornal “O Globo” de 24/06/2012, e disponível no site da ABP.

sábado, 21 de julho de 2012

CUIDADO COM OS BURROS MOTIVADOS


A revista ISTO É publicou esta entrevista de Camilo Vannuchi. 
O entrevistado é Roberto Shinyashiki, médico psiquiatra, com Pós-Graduação em administração de empresas pela USP, consultor organizacional e conferencista de renome nacional e internacional.  
Em 'Heróis de Verdade', o escritor combate a supervalorização das aparências, diz que falta ao Brasil competência, e não autoestima.

ISTO É - Quem são os heróis de verdade?
Roberto Shinyashiki -- Nossa sociedade ensina que, para ser uma pessoa de sucesso, você precisa ser diretor de uma multinacional, ter carro importado, viajar de primeira classe.
O mundo define que poucas pessoas deram certo. Isso é uma loucura. Para cada diretor de empresa, há milhares de funcionários que não chegaram a ser gerentes.
E essas pessoas são tratadas como uma multidão de fracassados. Quando olha para a própria vida, a maioria se convence de que não valeu à pena, porque não conseguiu ter o carro, nem a casa maravilhosa.
Para mim, é importante que o filho da moça que trabalha na minha casa, possa se orgulhar da mãe. O mundo precisa de pessoas mais simples e transparentes. Heróis de verdade são aqueles que trabalham para realizar seus projetos de vida, e não para impressionar os outros.
São pessoas que sabem pedir desculpas e admitiram que erraram.


ISTO É - O Sr. citaria exemplos?
Shinyashiki -- Quando eu nasci, minha mãe era empregada doméstica e meu pai, órfão aos sete anos, empregado em uma farmácia. Morávamos em um bairro miserável em São Vicente (SP) chamado Vila Margarida.  Eles são meus heróis.  Conseguiram criar seus quatro filhos, que hoje estão bem.  Acho lindo quando o Cafu põe uma camisa em que está escrito '100% Jardim Irene'.
É pena que a maior parte das pessoas esconda suas raízes. O resultado é um mundo vítima da depressão, doença que acomete hoje 10% da população americana.  Em países como o Japão, a Suécia e a Noruega, há mais suicídio do que homicídio.
Por que tanta gente se mata?  Parte da culpa está na depressão das aparências, que acomete a mulher, que embora não ame mais o marido, mantém o casamento, ou o homem que passa décadas em um emprego, que não o faz se sentir realizado, mas o faz se sentir seguro.

ISTO É - Qual o resultado disso?
Shinyashiki -- Paranoia e depressão cada vez mais precoce. O pai quer preparar o filho para o futuro e mete o menino em aulas de inglês, informática e mandarim.  Aos nove ou dez anos a depressão aparece.  A única coisa que prepara uma criança para o futuro, é ela poder ser criança. Com a desculpa de prepará-los para o futuro, os malucos dos pais estão roubando a infância dos filhos. Essas crianças serão adultos inseguros e terão discursos hipócritas. Aliás, a hipocrisia já predomina no mundo corporativo.


ISTO É - Por quê?
Shinyashiki -- O mundo corporativo virou um mundo de faz-de-conta, a começar pelo processo de recrutamento. É contratado o sujeito com mais marketing pessoal.
As corporações valorizam mais a autoestima do que a competência.  Sou presidente da Editora Gente e entrevistei uma moça que respondia todas as minhas perguntas com uma ou duas palavras. Disse que ela não parecia demonstrar interesse. Ela me respondeu estar muito interessada, mas como falava pouco, pediu que eu pesasse o desempenho dela, e não a conversa.  Até porque ela era candidata a um emprego na contabilidade, e não de relações públicas. Contratei-a na hora. Num processo clássico de seleção, ela não passaria da primeira etapa.

ISTO É - Há um script estabelecido?
Shinyashiki -- Sim. Quer ver uma pergunta estúpida feita por um presidente de multinacional no programa 'O Aprendiz'? - Qual é seu defeito? Todos respondem que o defeito é não pensar na vida pessoal: - Eu mergulho de cabeça na empresa. Preciso aprender a relaxar. É exatamente o que o Chefe quer escutar.  Por que você acha que nunca alguém respondeu ser desorganizado ou esquecido?  É contratado quem é bom em conversar, em fingir. Da mesma forma, na maioria das vezes, são promovidos aqueles que fazem o jogo do poder. O vice-presidente de uma as maiores empresas do planeta me disse:  'Sabe, Roberto, ninguém chega à vice-presidência sem mentir'. Isso significa que quem fala a verdade não chega a diretor!

ISTO É - Temos um modelo de gestão que premia pessoas mal preparadas?
Shinyashiki -- Ele cria pessoas arrogantes, que não têm a humildade de se preparar, que não têm capacidade de ler um livro até o fim e não se preocupam com o conhecimento. Muitas equipes precisam de motivação, mas o maior problema no Brasil é competência. Cuidado com os burros motivados. Há muita gente motivada fazendo besteira. Não adianta você assumir uma função, para a qual não está preparado. Fui cirurgião e me orgulho de nunca um paciente ter morrido na minha mão.
Mas tenho a humildade de reconhecer que isso nunca aconteceu graças a meus chefes, que foram sábios em não me dar um caso, para o qual eu não estava preparado.  Hoje, o garoto sai da faculdade achando que sabe fazer uma neurocirurgia. O Brasil se tornou incompetente e não acordou para isso.


ISTO É - Está sobrando autoestima?
Shinyashiki - Falta às pessoas a verdadeira autoestima. Se eu preciso que os outros digam que sou o melhor, minha autoestima está baixa.  Antes, o ter conseguia substituir o ser. O cara mal-educado dava uma gorjeta alta para conquistar o respeito do garçom. 
Hoje, como as pessoas não conseguem nem "ser", nem "ter", o objetivo de vida se tornou "parecer"
As pessoas parecem que sabem, parece que fazem, parece que acreditam. E poucos são humildes para confessar que não sabem.. Há muitas mulheres solitárias no Brasil, que preferem dizer que é melhor assim.  Embora a autoestima esteja baixa, fazem pose de que está tudo bem.


ISTO É - Por que nos deixamos levar por essa necessidade de sermos perfeitos em tudo e de valorizar a aparência?
Shinyashiki -- Isso vem do vazio que sentimos. A gente continua valorizando os heróis.  Quem vai salvar o Brasil? O Lula. Quem vai salvar o time? O técnico. Quem vai salvar meu casamento? O terapeuta. O problema é que eles não vão salvar nada!  Tive um professor de filosofia que dizia: 'Quando você quiser entender a essência do ser humano, imagine a rainha Elizabeth com uma crise de diarreia durante um  jantar no Palácio de Buckingham'. Pode parecer incrível, mas a rainha Elizabeth também tem diarreia. Ela certamente já teve dor de dente, já chorou de tristeza, já fez coisas que não deram certo. A gente tem de parar de procurar super-heróis, porque se o super-herói não segura a onda, todo mundo o considera um fracassado.

ISTO É - O conceito muda quando a expectativa não se comprova?
Shinyashiki -- Exatamente. A gente não é super-herói nem super fracassado. A gente acerta, erra, tem dias de alegria e dias de tristeza. Não há nada de errado nisso.  Hoje, as pessoas estão questionando o Lula, em parte porque acreditavam que ele fosse mudar suas vidas e se decepcionaram. A crise será positiva se elas entenderem que a responsabilidade pela própria vida é delas.


ISTO É - Muitas pessoas acham que é fácil para o Roberto Shinyashiki dizer essas coisas, já que ele é bem-sucedido. O senhor tem defeitos?
Shinyashiki -- Tenho minhas angústias e inseguranças. Mas aceitá-las faz minha vida fluir facilmente.  Há várias coisas que eu queria e não consegui. Jogar na Seleção Brasileira, tocar nos Beatles (risos). Meu filho mais velho nasceu com uma doença cerebral e hoje tem 25 anos. Com uma criança especial, eu aprendi que, ou eu a amo do jeito que ela é, ou vou massacrá-la o resto da vida para ser o filho que eu gostaria que fosse. Quando olho para trás, vejo que 60% das coisas que fiz deram certo.
O resto foram apostas e erros. Dia desses apostei na edição de um livro, que não deu certo. Um amigão me perguntou: 'Quem decidiu publicar esse livro?' Eu respondi que tinha sido eu. O erro foi meu. Não preciso mentir.

ISTO É - Como as pessoas podem se livrar dessa tirania da aparência?
Shinyashiki -- O primeiro passo é pensar nas coisas que fazem as pessoas cederem a essa tirania e tentar evitá-las.  São três fraquezas: 
A primeira é precisar de aplauso, a segunda é precisar se sentir amada e a terceira é buscar segurança. 
Os Beatles foram recusados por gravadoras e nem por isso desistiram. Hoje, o erro das escolas de música é definir o estilo do aluno. Elas ensinam a tocar como o Steve Vai, o B. B. King ou o Keith Richards. Os MBAs têm o mesmo problema: ensinam os alunos a serem covers do Bill Gates. O que as escolas deveriam fazer é ajudar o aluno a desenvolver suas próprias potencialidades. 

ISTO É  -  Muitas pessoas têm buscado sonhos que não são seus?
Shinyashiki -- A sociedade quer definir o que é certo.  São quatro loucuras da sociedade... 
A primeira é instituir que todos têm de ter sucesso, como se eles não tivessem significados individuais. 
A segunda loucura é: Você tem de estar feliz todos os dias. 
A terceira é: Você tem que comprar tudo o que puder. O resultado é esse consumismo absurdo. 
Por fim, a quarta loucura: Você tem de fazer as coisas do jeito certo. Jeito certo não existe. Não há um caminho único para se fazer as coisas. As metas são interessantes para o sucesso, mas não para a felicidade. 
Felicidade não é uma meta, mas um estado de espírito. 
Tem gente que diz que não será feliz, enquanto não casar, enquanto outros se dizem infelizes justamente por causa do casamento. Você pode ser feliz tomando sorvete, ficando em casa com a família ou com amigos verdadeiros, levando os filhos para brincar ou indo à praia ou ao cinema.. 
Quando era recém-formado em São Paulo, trabalhei em um hospital de pacientes terminais.
Todos os dias morriam nove ou dez pacientes. Eu sempre procurei conversar com eles na hora da morte. A maior parte pega o médico pela camisa e diz: 'Doutor, não me deixe morrer. Eu me sacrifiquei à vida inteira, agora eu quero aproveitá-la e ser feliz'. Eu sentia uma dor enorme por não poder fazer nada. Ali eu aprendi que a felicidade é feita de coisas pequenas.
Ninguém na hora da morte diz se arrepender por não ter aplicado o dinheiro em imóveis ou ações, mas sim de ter esperado muito tempo ou perdido várias oportunidades para aproveitar a vida.

domingo, 15 de julho de 2012

UM TEMPO SEM NOME

O namoro do Chico Buarque com a cantora ruiva Thais Gulin rendeu para nós este primor de blues  ESSA PEQUENA, cuja letra vai aí abaixo. Mas rendeu também a interessante crônica UM TEMPO SEM NOME da escritora Rosiska Darcy de Oliveira sobre “o novo conceito de envelhecer”. 

Thais
                                                          Gulin e Chico
                                                          Buarque namoro
                                                          (Foto:
                                                          Divulgação)
 
Essa Pequena
Meu tempo é curto, o tempo dela sobra
Meu cabelo é cinza, o dela é cor de abóbora
Temo que não dure muito a nossa novela, mas
Eu sou tão feliz com ela
Meu dia voa e ela não acorda
Vou até a esquina, ela quer ir para a Flórida
Acho que nem sei direito o que é que ela fala, mas
Não canso de contemplá-la
Feito avarento, conto os meus minutos
Cada segundo que se esvai
Cuidando dela, que anda noutro mundo
Ela que esbanja suas horas ao vento, ai
Às vezes ela pinta a boca e sai
Fique à vontade, eu digo, take your time
Sinto que ainda vou penar com essa pequena, mas
O blues já valeu a pena
  
  

 UM TEMPO SEM NOME

 Com seu cabelo cinza, rugas novas e os mesmos olhos verdes, cantando madrigais para a moça do cabelo cor de abóbora, Chico Buarque de Holanda vai bater de frente com as patrulhas do senso comum. Elas torcem o nariz para mais essa audácia do trovador. O casal cinza e cor de abóbora segue seu caminho e tomara que ele continue cantando “eu sou tão feliz com ela” sem encontrar resposta ao “que será que dá dentro da gente que não devia”.
Afinal, é o olhar estrangeiro que nos faz estrangeiros a nós mesmos e cria os interditos que balizam o que supostamente é ou deixa de ser adequado a uma faixa etária. O olhar alheio é mais cruel que a decadência das formas. É ele que mina a autoimagem, que nos constitui como velhos, desconhece e, de certa forma, proíbe a verdade de um corpo sujeito à impiedade dos anos sem que envelheça o alumbramento diante da vida .
Proust, que de gente entendia como ninguém, descreve o envelhecer como o mais abstrato dos sentimentos humanos. O príncipe Fabrizio Salinas, o Leopardo criado por Tommasi di Lampedusa, não ouvia o barulho dos grãos de areia que escorrem na ampulheta. Não fora o entorno e seus espelhos, netos que nascem, amigos que morrem, não fosse o tempo “um senhor tão bonito quanto a cara do meu filho“, segundo Caetano, quem, por si mesmo, se perceberia envelhecer? Morreríamos nos acreditando jovens como sempre fomos.
A vida sobrepõe uma série de experiências que não se anulam, ao contrário, se mesclam e compõem uma identidade. O idoso não anula dentro de si a criança e o adolescente, todos reais e atuais, fantasmas saudosos de um corpo que os acolhia, hoje inquilinos de uma pele em que não se reconhecem. E, se é verdade que o envelhecer é um fato e uma foto, é também verdade que quem não se reconhece na foto, se reconhece na memória e no frescor das emoções que persistem. É assim que, vulcânica, a adolescência pode brotar em um homem ou uma mulher de meia-idade, fazendo projetos que mal cabem em uma vida inteira.
Essa doce liberdade de se reinventar a cada dia poderia prescindir do esforço patético de camuflar com cirurgias e botoxes — obras na casa demolida — a inexorável escultura do tempo. O medo pânico de envelhecer, que fez da cirurgia estética um próspero campo da medicina e de uma vendedora de cosméticos a mulher mais rica do mundo, se explica justamente pela depreciação cultural e social que o avançar na idade provoca.
Ninguém quer parecer idoso, já que ser idoso está associado a uma sequência de perdas que começam com a da beleza e a da saúde. Verdadeira até então, essa depreciação vai sendo desmentida por uma saudável evolução das mentalidades: a velhice não é mais o que era antes. Nem é mais quando era antes. Os dois ritos de passagem que a anunciavam, o fim do trabalho e da libido, estão, ambos, perdendo autoridade. Quem se aposenta continua a viver em um mundo irreconhecível que propõe novos interesses e atividades. A curiosidade se aguça na medida em que se é desafiado por bem mais que o tradicional choque de gerações com seus conflitos e desentendimentos. Uma verdadeira mudança de era nos leva de roldão, oferecendo-nos ao mesmo tempo o privilégio e o susto de dela participar.
A libido, seja por uma maior liberalização dos costumes, seja por progressos da medicina, reclama seus direitos na terceira idade com uma naturalidade que em outros tempos já foi chamada de despudor. Esmaece a fronteira entre as fases da vida. É o conceito de velhice que envelhece. Envelhecer como sinônimo de decadência deixou de ser uma profecia que se autorrealiza. Sem, no entanto, impedir a lucidez sobre o desfecho.
”Meu tempo é curto e o tempo dela sobra”, lamenta-se o trovador, que não ignora a traição que nosso corpo nos reserva. Nosso melhor amigo, que conhecemos melhor que nossa própria alma, companheiro dos maiores prazeres, um dia nos trairá, adverte o imperador Adriano em suas memórias escritas por Marguerite Yourcenar.
Todos os corpos são traidores. Essa traição, incontornável, que não é segredo para ninguém, não justifica transformar nossos dias em sala de espera, espectadores conformados e passivos da degradação das células e dos projetos de futuro, aguardando o dia da traição.Chico, à beira dos setenta anos, criando com brilho, ora literatura , ora música, cantando um novo amor, é a quintessência desse fenômeno, um tempo da vida que não se parece em nada com o que um dia se chamou de velhice. Esse tempo ainda não encontrou seu nome. Por enquanto podemos chamá-lo apenas de vida.

ROSISKA DARCY DE OLIVEIRA é escritora. 
O Globo, 21/01/12

quarta-feira, 11 de julho de 2012

Um Amor em Outra Cidade

procurei muito esse texto na internetis... não é um dos mais famosos, nem dos mais populares, li numa dessas crônicas de domingos, mas não havia guardado, nas correrias de um dia de lazer... contudo havia gostado muito dele, traduzia e muito as percepções de quem já passou das ilusões da juventude e já está pronto pra viver a maturidade em sua plenitude, mesmo que, paradoxalmente,  a viva com todas as incertezas que fazem parte da magnífica aventura que é descobrir(-se) num outro...


Quase ninguém mais se enraíza. Pessoas trabalham em outros países, fazem cursos em outros estados, o que faz com que muita gente se apaixone por “estrangeiros”, aumentando o número de casais que se relacionam a distância. Será que funciona?

Se eu tivesse 20 anos, acharia problemático estar apaixonada por alguém que eu visse pouco. Nos meus 20, não havia Skype nem qualquer outra ferramenta de aproximação imediata: era carta, telefone ou nada. Mesmo hoje, com as facilidades tecnológicas, é complicado não ter a presença física de quem se ama justo na fase em que nosso romantismo ainda não está blindado contra as ilusões. No início da vida, tudo o que se quer é compartilhar as vivências e dar juntos os primeiros passos rumo à formação de uma família. Não que seja impossível concretizar esse sonho se encontrando uma vez a cada três semanas ou a cada dois meses, mas a falta de ensaio pode comprometer o espetáculo.

Já para quem tem milhagem em histórias de amor, quem já viveu ao menos uma relação duradoura, já provou das agruras e dos prazeres de um relacionamento sob o mesmo teto, já teve filhos, os criou e tem novamente em mãos sua liberdade, uma relação a distância – qualquer distância – pode ser uma experiência reveladora.

Toda distância é relativa. Morar em casas separadas já é distância – e das mais saudáveis. Se cada um tem seu próprio apartamento, seu próprio trabalho, seus próprios filhos, suas próprias manias e ainda a sorte de se sustentar sem precisar somar seu salário com o do parceiro, que bênção. A independência dará um charme extra à relação, a saudade será o melhor afrodisíaco, e quando quiserem dormir juntos e acordar juntos, ninguém impede. Será uma escolha, não uma obrigação.

Distância geográfica é mais radical. Ela é medida pelo tempo com que ficam sem se ver. Um mês? Três meses? Seis meses? Quanto mais longo o afastamento, mais a independência (aquela que parecia charmosa) pode provocar neuras. Há que se firmar um contrato verbal onde as regras estejam bem claras e haja confiança absoluta, pois o ciúme envenena e o antídoto está longe.

Mas se a distância não é tanta e permite que o casal se encontre a cada duas ou três semanas, aí é como se fossem a “casa de praia” um do outro.

O namoro “casa de praia” é para os que não planejam o futuro, não têm necessidade de criar vínculos eternos e não possuem inseguranças crônicas. O namoro “casa de praia” é para os que têm muitos amigos, um trabalho que absorve bastante e não se incomodam de sair desacompanhados. Um amor “casa de praia” pode parecer muito investimento para pouco proveito, mas quando se chega a uma determinada etapa da vida, é um luxo ter um retiro amoroso que nos rapte da rotina por poucos dias, para depois voltarmos a ela, livres e renovados.

Se não é a relação ideal, é quase.

MARTHA MEDEIROS
18/02/2012
marthamedeiros@terra.com.br
N° 12497
Jornal de Santa Catarina

domingo, 8 de julho de 2012

A Morte Devagar

Morre lentamente quem não troca de idéias, não troca de discurso, evita as próprias contradições.
Morre lentamente quem vira escravo do hábito, repetindo todos os dias o mesmo trajeto e as mesmas compras no supermercado. Quem não troca de marca, não arrisca vestir uma cor nova, não dá papo para quem não conhece.
Morre lentamente quem faz da televisão o seu guru e seu parceiro diário. Muitos não podem comprar um livro ou uma entrada de cinema, mas muitos podem, e ainda assim alienam-se diante de um tubo de imagens que traz informação e entretenimento, mas que não deveria, mesmo com apenas 14 polegadas, ocupar tanto espaço em uma vida.
Morre lentamente quem evita uma paixão, quem prefere o preto no branco e os pingos nos is a um turbilhão de emoções indomáveis, justamente as que resgatam brilho nos olhos, sorrisos e soluços, coração aos tropeços, sentimentos.
Morre lentamente quem não vira a mesa quando está infeliz no trabalho, quem não arrisca o certo pelo incerto atrás de um sonho, quem não se permite, uma vez na vida, fugir dos conselhos sensatos.
Morre lentamente quem não viaja quem não lê quem não ouve música, quem não acha graça de si mesmo.
Morre lentamente quem destrói seu amor-próprio. Pode ser depressão, que é doença séria e requer ajuda profissional. Então fenece a cada dia quem não se deixa ajudar.
Morre lentamente quem não trabalha e quem não estuda, e na maioria das vezes isso não é opção e, sim, destino: então um governo omisso pode matar lentamente uma boa parcela da população.
Morre lentamente quem passa os dias queixando-se da má sorte ou da chuva incessante, desistindo de um projeto antes de iniciá-lo, não perguntando sobre um assunto que desconhece e não respondendo quando lhe indagam o que sabe.
Morre muita gente lentamente, e esta é a morte mais ingrata e traiçoeira, pois quando ela se aproxima de verdade, aí já estamos muito destreinados para percorrer o pouco tempo restante. Que amanhã, portanto, demore muito para ser o nosso dia. Já que não podemos evitar um final repentino, que ao menos evitemos a morte em suaves prestações, lembrando sempre que estar vivo exige um esforço bem maior do que simplesmente respirar. 
 
 
Martha Medeiros

terça-feira, 3 de julho de 2012

uma simples pedra



Pedra…

O distraído nela tropeçou,
o bruto a usou como projétil,
o empreendedor, usando-a construiu,
o campônio, cansado da lida,
Dela fez assento,
para os meninos foi brinquedo,
Drummond a poetizou,
Davi matou Golias…
Por fim,
o artista concebeu a mais bela escultura.
Em todos os casos,
a diferença não era a pedra
mas o homem.



Antonio Pereira