segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

A cozinha de Rubem Alves

Quando alguém como Rubem Alves deixa de escrever, todos nós empobrecemos um pouco. “Essa crônica é uma despedida”, escreveu ele em sua coluna de 1º de novembro passado (caderno Cotidiano, Folha de São Paulo). “A velhice é o tempo do cansaço de todas as coisas. Estou velho. Estou cansado. Já escrevi muito. E como acontece com as estrelas, há sempre a obrigação de brilhar.” Depois esclareceria que apenas deixou de escrever como um dever, todas as semanas. Ainda bem. E, como homenagem a esse grande escritor, reproduzo aqui trechos de “Cozinha” – um belo artigo seu publicado no Correio Popular (em 19 de março de 2000).
“Qual é o lugar mais importante da sua casa? Eu acho que essa é uma boa pergunta para início de uma sessão de psicanálise. Porque, quando a gente revela qual é o lugar mais importante da casa, a gente revela também o lugar preferido da alma. Nas Minas Gerais, onde nasci, o lugar mais importante era a cozinha. Não era o mais chique e nem o mais arrumado. Lugar chique e arrumado era a sala de visitas, com bibelôs, retratos ovais nas paredes, espelhos e tapetes no chão. Na sala de visitas as criança se comportavam bem, eram só sorrisos e todos usavam máscaras. Na cozinha era diferente: a gente era a gente mesmo, fogo, fome e alegria…
“A alma mineira vive de saudade. Tenho saudades do que já foi, as velhas cozinhas de Minas, com seus fogões de lenha, cascas de laranja secas, penduradas, para acender o fogo, bule de café sobre a chapa, lenha crepitando no fogo, o cheiro bom da fumaça, rostos vermelhos. Minha alma tem saudades dessas cozinhas antigas …
“Fogo de fogão de lenha é diferente de todos os demais fogos. Veja o fogo de uma vela acesa sobre uma mesa. É fogo fácil. Basta encostar um fósforo aceso no pavio da vela para que ela se acenda. Não é preciso nem arte nem ciência. Até uma criança sabe. Só precisa um cuidado: deixar fechadas as janelas para que um vento súbito não apague a chama. O fogo do fogão é outra coisa. Bachelard notou a diferença: “a vela queima só. Não precisa de auxílio. A chama solitária tem uma personalidade onírica diferente da do fogo na lareira. O homem, diante de um fogo prolixo pode ajudar a lenha a queimar, coloca uma acha suplementar no tempo devido. O homem que sabe se aquecer mantém uma atitude de Prometeu, Daí seu orgulho de atiçador perfeito… Fogo de lareira é igual ao fogo do fogão de lenha. Antigamente não havia lareiras em nossas casas. O que havia era o fogo do fogão de lenha que era, a um tempo, fogo de lareira e fogo de cozinhar…
“Já se disse que o homem surgiu quando a primeira canção foi cantada. Mas eu imagino que a primeira canção foi cantada ao redor do fogo, todos juntos se aquecendo do frio e se protegendo contra as feras. Antes da canção, o fogo. Um fogo aceso é um sacramento de comunhão solitária. Solitária porque a chama que crepita no fogão desperta sonhos que são só nossos. Mas os sonhos solitários se tornam comunhão quando se aquece e come…
“Nas casas de Minas a cozinha ficava no fim da casa. Ficava no fim não por ser menos importante mas para ser protegida da presença de intrusos. Cozinha era intimidade. E também para ficar mais próxima do outro lugar de sonhos, a horta-jardim. Pois os jardins ficavam atrás. Lá estavam os manacás, o jasmim do imperador, as jabuticabeiras, laranjeiras e hortaliças. Era fácil sair da cozinha pra colher chuchus, quiabo, abobrinhas, salsa, cebolinha, tomatinhos vermelhos, hortelã e, nas noites frias, folhas de laranjeira para fazer chá…
“Sinto-me feliz cozinhando. Não sou cozinheiro. Preparo pratos simples. Gosto de inventar. O que mais gosto de fazer são as sopas. Vaca atolada, sopa de fubá, sopa de abóbora com maracujá, sopa de berinjela, sopa de mandioquinha com manga, sopa de coentro… Você já ouviu falar em sopa de coentro? É sopa de portugueses pobres, deliciosa, com muito azeite e pão torrado. A sopa desce quente e, chegando no estômago, confirma … A culinária leva a gente bem próximo das feiticeiras. Como a Babette (“Festa de Babette”) e a Tita (“Como água para chocolate”)…”

sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

A festa de Babette - Rubem Alves

Um dos meus prazeres é passear pela feira.  Vou para comprar.  Olhos compradores são olhos caçadores: vão em busca de caça, coisas específicas para o almoço e a janta. Procuram.   O que deve ser comprado está na listinha. Olhos caçadores não param sobre o que não está escrito nela.  Mas não vou só para comprar.  Alterno o olhar caçador com o olhar vagabundo.  O olhar vagabundo não procura nada.  Ele vai passeando sobre as coisas.  O olhar vagabundo tem prazer nas coisas que não vão ser compradas e não vão ser comidas.  O olhar caçador está a serviço da boca.  Olham para a boca comer.  Mas o olhar vagabundo, é ele que come. 
A gente fala: comer com os olhos. é verdade.  Os olhos vagabundos são aqueles que comem o que vêem.  E sentem prazer.  A Adélia diz que Deus a castiga de vez em quando, tirando-lhe a poesia.  Ela explica dizendo que fica sem poesia quando seus olhos, olhando para uma pedra, vêem uma pedra.  Na feira é possível ir com olhos poéticos e com olhos não poéticos.  Os olhos não poéticos vêem as coisas que serão comidas.  Olham para as cebolas e pensam em molhos.  Os olhos poéticos olham para as cebolas e pensam em outras coisas. Como o caso daquela paciente minha que, numa tarde igual a todas as outras, ao cortar uma cebola viu na cebola cortada coisas que nunca tinha visto.  A cebola cortada lhe apareceu, repentinamente, como o vitral redondo de catedral.  Pediu o meu auxílio.  Pensou que estava ficando louca.  Eu a tranqüilizei dizendo que o que ela pensava ser loucura nada mais era que um surto de poesia.  Para confirmar o meu diagnóstico lembrei-lhe o poema de Pablo Neruda "A Cebola", em que ele fala dela como "rosa d'água com escamas de cristal".  Depois de ler o poema do Neruda uma cebola nunca será a mesma coisa.  Ando assim pela feira poetizando, vendo nas coisas que estão expostas nas bancas realidades assombrosas, incompreensíveis, maravilhosas.  Pessoas há que, para terem experiências místicas, fazem longas peregrinações para lugares onde, segundo relatos de outros, algum anjo ou ser do outro mundo apareceu. Quando quero ter experiências místicas eu vou à feira. Cebolas, tomates, pimentões, uvas, caquis e bananas me assombram mais que anjos azuis e espíritos luminosos.  Entidades encantadas.  Seres de um outro mundo.  Interrompem a mesmice do meu cotidiano.

Pimentões, brilhantes, lisos, vermelhos, amarelos e verdes.  Ainda hei de decorar uma árvore de Natal com pimentões. Nabos brancos, redondos, outros obscenamente compridos.  Lembro-me de uma crônica da querida e inspirada Hilda Hilst que escandalizou os delicados: ela ia pela feira poetizando eroticamente sobre nabos e pepinos.  Escandalizou porque ela disse o que todo mundo pensa mas não tem coragem de dizer.  Roxas berinjelas, cenouras amarelas, tomates redondos e vermelhos, morangas gomosas, salsinhas repicadas a tesourinha, cebolinhas, canudos ocos, bananas compridas e amarelas, caquis redondos e carnudos (sobre eles o Heládio Brito escreveu um poema tão gostoso quanto eles mesmos), mamões, úteros grávidos por dentro, laranjas alaranjadas (um gomo de laranja é um assombro, o suco guardado em milhares de garrafinhas transparentes), cocos duros e sisudos, pêssegos, perfume de jasmim do imperador, cachos de uvas, delicadas obras de arte, morangos vermelhos, frutinhas que se comem à beira do abismo...  Minha caminhada me leva dos vegetais às carnes: lingüiças, costelas defumadas, carne de sol, galinhas, codornizes, bacalhau, peixes de todos os tipos, camarões, lagostas.  Os vegetarianos estremecem. Compreendo, porque na alma eu também sou vegetariano.  Fosse eu rei decretaria que no meu reino nenhum bicho seria morto para nosso prazer gastronômico.  Mas rei não sou.  Os bichos já foram mortos contra a minha vontade.  Nada posso fazer para trazê-los de volta à vida.  Assim, dou-lhes minha maior prova de amor: transformo-os em deleite culinário para que continuem a viver no meu corpo. 

De alguma maneira vivem em mim todas as coisas que comi.  Sobre isso sabia muito bem o genial pintor Giuseppe Arcimboldo (1527-1593), que pintava os rostos das pessoas com os legumes, frutas e animais que se encontram nas bancas da feira. (Dê-se o prazer de ver as telas de Arcimboldo. Nas livrarias, coleção Taschen, mais ou menos quinze reais).

Meus pensamentos começam a teologar.  Penso que Deus deve ter sido um artista brincalhão para inventar coisas tão incríveis para se comer.   Penso mais: que ele foi gracioso. Deu-nos as coisas incompletas, cruas.  Deixou-nos o prazer de inventar a culinária.

Comer é uma felicidade, se se tem fome. Todo mundo sabe disto. A té os ignorantes nenezinhos. Mas poucos são os que se dão conta de que felicidade maior que comer é cozinhar. Faz uns anos comecei a convidar alguns amigos para cozinharmos juntos, uma vez por semana. Eles chegavam lá pelas seis horas (acontecia na casa antiga onde hoje está o restaurante Dali). Cada noite um era o mestre cuca, escolhia o prato e dava as ordens. Os outros obedeciam alegremente. E aí começávamos a fazer as coisas comuns preliminares a cozinhar e comer: lavar, descascar, cortar — enquanto íamos ouvindo música, conversando, rindo, beliscando e bebericando. A comida ficava pronta lá pelas 11 da noite.

Ninguém tinha pressa. Não é por acaso que a palavra comer tenha sentido duplo. O prazer de comer, mesmo, não é muito demorado. Pode até ser muito rápido, como no McDonald's. O que é demorado são os prazeres preliminares, arrastados — quanto mais demora maior é a fome, maior a alegria no gozo final. Bom seria se cozinha e sala de comer fossem integradas — os arquitetos que cuidem disso — para que os que vão comer pudessem participar também dos prazeres do cozinhar. Sábios são os japoneses que descobriram um jeito de pôr a cozinha em cima da mesa onde se come, de modo que cozinhar e comer ficam sendo uma mesma coisa. Pois é precisamente isto que é o sukiyaki, que fica mais gostoso se se usa kimono de samurai.

Quem pensa que a comida só faz matar a fome está redondamente enganado. Comer é muito perigoso. Porque quem cozinha é parente próximo das bruxas e dos magos. Cozinhar é feitiçaria, alquimia. E comer é ser enfeitiçado. Sabia disso Babette, artista que conhecia os segredos de produzir alegria pela comida. Ela sabia que, depois de comer, as pessoas não permanecem as mesmas. Coisas mágicas acontecem. E desconfiavam disso os endurecidos moradores daquela aldeola, que tinham medo de comer do banquete que Babette lhes preparara. Achavam que ela era uma bruxa e que o banquete era um ritual de feitiçaria. No que eles estavam certos. Que era feitiçaria, era mesmo. Só que não do tipo que eles imaginavam. Achavam que Babette iria por suas almas a perder. Não iriam para o céu. De fato, a feitiçaria aconteceu: sopa de tartaruga, cailles au sarcophage, vinhos maravilhosos, o prazer amaciando os sentimentos e pensamentos, as durezas e rugas do corpo sendo alisadas pelo paladar, as máscaras caindo, os rostos endurecidos ficando bonitos pelo riso, in vino veritas... Está tudo no filme A Festa de Babette. Terminado o banquete, já na rua, eles se dão as mãos numa grande roda e cantam como crianças... Perceberam, de repente, que o céu não se encontra depois que se morre. Ele acontece em raros momentos de magia e encantamento, quando a máscara-armadura que cobre o nosso rosto cai e nos tornamos crianças de novo. Bom seria se a magia da Festa de Babette pudesse ser repetida...


O texto acima foi publicado no jornal "Correio Popular", Campinas(SP), com o qual o educador e escritor colabora.

Rubem Alves: sua vida e sua obra estão em "Biografias".

segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

Sobre a nossa relativa liberdade - Martha Medeiros



Nossa liberdade é parcial, todos sabem. Não me refiro ao país, e sim à nossa liberdade individual, minha e sua. Sempre que toco nesse assunto me vem à cabeça aquela frase que citei outras vezes: 'O máximo de liberdade que podemos almejar é escolher a prisão em que queremos viver.' É isso aí. E quais são essas prisões? Pode ser um casamento, ou, ao contrário, um compromisso com a solidão. Pode ser um emprego ou uma cidade que não conseguimos abandonar. Pode ser a maternidade. Pode ser a política. Pode ser o apego ao poder. Enfim, todas as nossas escolhas, incluindo as felizes, implicam algum confinamento, em alguma imobilidade, e não há nada de errado com isso, simplesmente assim é a vida, feita de opções que nos definem e nos enraizam.
Mas às vezes exageramos. Costumamos nos acorrentar também a algumas certezas e pensamentos como forma de dizer ao mundo quem somos. É como se redigíssemos uma constituição própria, para através dela apresentar à sociedade nossos alicerces: sou contra o voto obrigatório, sou a favor da descriminação das drogas, sou contra a pena de morte, sou a favor do controle de natalidade, sou contra a proibição do aborto, sou a favor das pesquisas com célula-tronco. Esse é apenas um exemplo de identidade que forjamos ao longo da vida. Você deve ter a sua, eu tenho a minha.
Dá uma segurança danada saber exatamente o que queremos e o que não queremos, no que cremos e no que desacreditamos. Mas onde é que está escrito, de fato, que temos que pensar sempre a mesma coisa, reagir sempre da mesma forma?
Ao trocar de opinião ou de hábitos, infringimos nossas próprias regras e passamos adiante uma imagem incômoda: a de que não somos seres confiáveis. As pessoas à nossa volta já haviam aprendido tudo sobre nós, sabiam lidar como nossos humores e nossos revezes, estava tudo dentro do programa e, de repente, ao mudarmos de idéia ou fazermos algo que nunca havíamos feito, subvertemos a ordem natural das coisas.
Quando visito algumas escolas, encontro estudantes um pouco assustados com as escolhas que farão e que lhe parecem definitivas. Tento aliviá-los: pensem, repensem, mudem quantas vezes vocês quiserem, é permitido voltar atrás. Digo isso porque eu mesma já reprimi muito meus movimentos, minhas alternâncias, numa época em que eu achava que uma pessoa séria tinha que morrer com suas escolhas. Ainda há quem considere leviana a pessoa que se questiona e se contradiz, mas já bastam as prisões necessárias - para que cultivar as desnecessárias?
Optei pelas medidas provisórias. Por isso, todos os anos eu faço uns picotes na minha constituição imaginária e jogo os pedacinhos de papel pela janela: é assim que comemoro o Dia da Independência. Da minha.
Martha Medeiros

quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

depois deste interlúdio, nem sei porque

tanto tempo sem postar nada, eis que me deparo com esse texto belíssimo deste autor que costumava acompanhar sempre...


Perdoar (Artur da Távola)

"... Aprendi outro dia que perdoar é a junção de "per" com "doar".

Doar é mais do que dar.
Doar é a entrega total do outro.
O prefixo "per" que tem várias acepções,
indica movimento no sentido "de"
ou em "direção" a ou "através"
ou "para" etimologicamente falando,
portanto, perdoar, quer dizer doar ao
outro a possibilidade de que ele possa amar,
possa doar-se.
Não apenas quem perdoa que se
"doa através do outro".
Perdoar implica abrir possibilidades
de amor para quem foi perdoado,
através da doação oferecida
por quem foi agravado.
Perdoar é a única forma de facilitar
ao outro a própria salvação.

Doar é mais do que dar: é a entrega total...

Perdoar é doar o amor,
é permitir que a pessoa objeto do perdão
possa também devolver um amor que,
até então, só negara.