segunda-feira, 27 de setembro de 2010

A ética da alegria e o fim da tirania

Regina Schöpke

Quando o filósofo Clément Rosset afirma, a respeito de Nietzsche, que “a alegria é a força maior”, ele deseja mostrar que a alegria não é um sentimento dentre outros, mas a força motriz que nos impele à vida, uma espécie de grande “sim” à existência em todas as suas facetas. Afinal, este sentimento envolve todos os nossos sentidos e nos fortalece de tal maneira que, uma vez alegres, nada mais parece pesar em nós.

É que a alegria, quando vivida em profundidade, não deixa espaço para mais nada — razão pela qual Leibniz a definia como um sentimento totalizante que, estando presente, domina todos os demais. Totalizante ou apenas dominante, a alegria, para Nietzsche, é a força que nos coloca em movimento, é aquilo que nos faz agir, é o que nos faz querer viver.

É claro que nem todos entendem a alegria deste modo. Para muitos, ela é apenas um ímpeto passageiro, uma sensação fugaz de contentamento e júbilo, algo que apenas contrasta com a dor, geralmente considerada mais permanente e profunda.

Porém, para filósofos como Nietzsche e, sobretudo, Espinosa, ela é um sentimento vital, afirmativo, que se confunde com a própria potência de existir.

Neste caso, ela pode ser definida como uma disposição favorável com relação à vida. Eis porque o homem alegre é sempre alegre, mesmo quando está triste (ao contrário do homem angustiado, que sempre é angustiado mesmo quando tem motivos para estar alegre).

Em poucas palavras, é preciso que se entenda que sem alegrias o corpo vai adoecendo e a paralisia das ações torna-se inexorável.

É a ocasião certa para a angústia se instalar e afunilar nossa percepção da vida. Porque é isto exatamente a angústia: uma sensação ou sentimento de vazio, de incompletude, de insignificância, uma espécie de afunilamento, de perda de perspectiva, de indisposição com a vida. É quando o niilismo se instala no âmago do ser e a própria vida é vista como nada.

Espinosa usa o conceito de “conatus” para definir esta força de existir inerente a cada ser (que aumenta e diminui ao longo da existência em função dos encontros alegres ou tristes que fazemos). É por isso que Nietzsche afirma que os pessimistas e niilistas, ao julgarem a vida má e pesada, nada mais fazem do que revelar sua própria impotência e fraqueza diante dela.

Sem dúvida, é de grande valor para estas reflexões o conhecimento genealógico do conceito de alegria (que ora foi pensado como um movimento da alma, ora como paixão, afecção, pulsão, emoção fundamental ou simples prazer da mente). E, neste caso, o livro “A história da alegria — Da Bíblia ao Romantismo tardio”, de Adam Potkay (Editora Globo), é uma boa fonte de informação. Potkay, que deixa claro que sua intenção não é buscar uma definição para a alegria em si mesma, mas, sim, mostrar o aspecto cultural de um sentimento que é também um conceito e uma palavra, parte do pressuposto de que os cristãos protestantes, ao contrário dos católicos, teriam posto a alegria no centro de suas preocupações (provavelmente por se negarem a levar uma existência terrena só de privações e sofrimentos).

Potkay, no entanto, não se priva de dar sua própria interpretação da alegria e se alia àqueles que a vêem como um sentimento fugaz, que emerge como uma pausa na dor da existência.

Trata-se, para ele, de uma sensação passageira que inebria os sentidos e a mente.

Definição um tanto schopenhaueriana, sem dúvida: afinal, a alegria é vista mais como exceção do que regra numa vida pensada como dor e sofrimento.

Mas isto não é tudo. Potkay define a alegria como um “deleite da mente”, o que significa dizer que ele tende a racionalizá-la e, assim, sentir-se alegre é, sobretudo, saber-se alegre. De fato a leitura do livro nos mostra como o conceito vai assumindo variadas formas e nuances (na poesia, na literatura, na filosofia ou na religião).

É aqui que saímos do universo histórico de Potkay e mergulhamos de novo nas reflexões filosóficas de Espinosa e Nietzsche.

Afinal, é preciso compreender a alegria do ponto de vista de sua ontologia, de sua realidade, é preciso entendê-la como uma forma de resistência, de enfrentamento do mundo e de suas falsas promessas de felicidade.

É aí que a leitura da “Ética” de Espinosa torna-se essencial para nos fazer entender como a busca dos bons encontros é fundamental para nos tornar mais fortes e livres. Na verdade, a lógica da vida (ou da potência) é simples: a alegria aumenta nosso poder de existir, aumenta o nosso “conatus”, enquanto a tristeza diminui nossas forças, nosso poder de ação.

Não existe uma regra para o que nos fortalece: pode ser uma bela música, um grande amor, uma amizade profunda, a filosofia, um afeto animal e até mesmo os prazeres mais simples do corpo, que foi sempre tão violentamente esmagado por uma moral hipócrita que condena as alegrias físicas em nome das alegrias “metafísicas”. Seja como for, é preciso buscar o que nos potencializa, porque é a fraqueza que alimenta os tiranos, diz Espinosa.

Eis que estamos diante de uma questão política e existencial das mais profundas: a tirania domina pela força, e também pelas ideias, os que estão fracos e impossibilitados de lutar.

As religiões, por exemplo, dominam os homens infundindolhes o medo da morte e dos castigos eternos.

Em suma, falar em uma ética da alegria é falar em uma ética da potência, uma ética que busca produzir homens mais fortes e plenos para a vida, ou seja, homens verdadeiramente livres.


REGINA SCHÖPKE é filósofa, historiadora e autora dos livros “Por uma filosofia da diferença” e “Matéria em movimento”. Atualmente, dedicase ao estudo da alegria, definida, antes de tudo, como potência de vida e de enfrentamento do mundo
 
 

PROSA&VERSO - 04/09/2010

Altos e baixos  

Numa época de oscilações entre a euforia e a depressão, que sentido ainda pode ser tirado das ideias de tristeza e felicidade?

sábado, 25 de setembro de 2010

A melancolia epidêmica


Orlando Coser


O século XX assistiu à emergência de uma nova cultura no enfrentamento dos males da alma. Em parte ela se deve à criação dos medicamentos psicotrópicos, cujo primeiro representante entrou no mercado em 1952. Estava aberta a temporada dos psicofármacos, que modificariam completamente o tratamento dos distúrbios da alma. Aparecia uma nova classificação química, a dos antipsicóticos, usados inicialmente no tratamento da esquizofrenia ou estados de intensa agitação psicomotora.
Este primeiro medicamento e seus sucessores teriam, desde então, revolucionado a psiquiatria.

Esta, entretanto, é apenas a narrativa sancionada pela indústria e pelo discurso acadêmico dominante, e não a verdade última deste campo. Nesse novo universo da psicofarmacologia, a indústria se esmerou na produção de metáforas — os discursos científicos e mercadológicos criados especificamente para falar dos efeitos dos novos medicamentos e suas indicações.

Uma vez que os efeitos obtidos com os novos medicamentos inauguravam novidades para as quais não existiam nomes, era preciso inventar formas de designá-los. Da junção entre substância e metáfora, nascem os numerosos estabilizadores, tranquilizantes, antidepressivos, neuromoduladores, antagonistas da serotonina… A l é m d e sintetizar novas substâncias, testá-las, e p r o d u z i r medicament o s , t ê m s e que produzir metáforas conceituais, argumentos e hipóteses científicas para dar aval às novas drogas.

Assim, o primeiro antipsicótico foi chamado de “estabilizador neurovegetativo”; o primeiro “antidepressivo”, de “energizante psíquico”. Os aparentes exageros ficam quase camuflados no discurso intensivo dos departamentos de marketing da indústria. Um bom exemplo é a “descoberta”, recente, de uma doença que se convencionou chamar de fobia social.

“Imagine ser alérgico a gente”, provoca a campanha de divulgação desta inovação diagnóstica, feita sob medida para um medicamento.

Suas vendas saltaram de 2,1 para 3,31 bilhões de dólares, em um ano. O departamento de marketing do laboratório não se preocupou em camuflar intenções, na apresentação do novo produto: “Todo comerciante tem o sonho de encontrar um mercado não identificado para desenvolvê-lo. Isso é o que nós fomos capazes de fazer com o transtorno de ansiedade social”. A luminosidade desta afirmação revela o tumultuado espectro do campo da saúde mental, agora totalmente sob o domínio da indústria ou, melhor dizendo, do capital industrial que lhe pede remuneração imediata.

O principal efeito desta estratégia mercadológica é o menosprezo à clínica médica e psicológica.

Parte do saber, da ciência, da tradição médica, é substituída pelo convencimento através de ampla ação de marketing, destinada não só a profissionais de saúde como, a partir de comunicação direta, a leigos.

A indústria assume a tarefa de instruir médicos e pacientes no desempenho do papel que lhe interessa. Para bem vender os produtos que fabrica, o marketing fomenta a sintomatização do viver. Os pacientes são instruídos a produzir sintomas e os médicos, a prescrever. Somos instruídos sobre determinados códigos comportamentais, e com eles aprendemos a diagnosticar, traduzir e entender certas queixas. Tudo embalado com argumentos científicos.

Estas instruções criam formas de percepção, julgamento e ação sobre determinadas questões, criam-se hábitos de consumo e comportamento.

Dos anúncios de medicamentos dos anos 1950 prometendo “reduzir os primitivos ímpetos de luta e fuga”, ou os sugeridos para amenizar nas crianças seu “ânimo contestador”, vemos nos últimos anos um crescimento exponencial desse marketing, em que as pessoas não ficam mais apenas tristes, desanimadas, fatigadas, angustiadas, aflitas. Agora elas são classificadas com diagnósticos graves de depressão, pânico, TOC. E o número de pessoas atendidas como depressivas não para de crescer. Os psicofármacos alteram os conceitos que fazemos de saúde, doença, sofrimento, bem estar, e a maneira como representamos nossos estados afetivos.

Dificuldades cotidianas viram sintomas patológicos.

A depressão, doença de importância indiscutível, transformouse numa febre que atinge quase 25% da população, quando, em 1960, era diagnosticada para 1% dos doentes. Mais uma vez, essa expansão não é determinada por um apuro no diagnóstico, e sim pela prescrição generalizada de medicamentos.

Os portadores reais dessa doença se misturam aos milhões que são de alguma forma vítimas do marketing farmacêutico.

Um dos argumentos já absorvidos por grande parte de profissionais e leigos afirma que a depressão seria o resultado de um desequilíbrio neuroquímico.

Embora questionável, o dogma é muito usado porque funciona como um modelo conceitual que instrumentaliza a pesquisa e o discurso científico da psiquiatria. Atualmente, tudo se passa como se um deprimido fosse quem padecesse de falta de serotonina. E, consequentemente, carecesse de um medicamento destinado a suprila. Todos os antidepressivos anunciam corrigir o desequilíbrio da balança neuro-hormonal, resultando que a venda destes medicamentos alcançasse cifras bilionárias.

Para ampliar a expansão do uso dos psicofármacos, o século XXI assiste a uma nova metáfora, a categoria “transtornos comportamentais”, genérica o suficiente para não ter limites, porém específica o bastante para indicar um problema a ser resolvido. Ideal para pediatras e clínicos gerais, induzidos a esta prescrição não padronizada (off-label). Idosos e crianças são o segmento da vez. Pesquisas americanas e inglesas alertam, entretanto, que se prescrevem antipsicóticos para crianças sem qualquer receio de efeitos colaterais, mesmo que tardios. Pesquisa documentam, entre 1995 e 2006, o crescimento do número de consultas médicas para clientes entre 2 e 18 anos, em que um psicotrópico da classe dos antipsicóticos fosse indicado, detectando um salto nestas prescrições de 8,6 por 1000 consultas em 1995 para 39,4 por mil em 2002. Com o agravante de 67% das indicações terem sido feitas por médicos não especializados em psiquiatria ou neurologia.


ORLANDO COSER é psiquiatra e psicanalista, doutor pela PUC-SP, e autor de “As metáforas farmacoquímicas com que vivemos” (Garamond)






PROSA&VERSO - 04/09/2010

Altos e baixos  

Numa época de oscilações entre a euforia e a depressão, que sentido ainda pode ser tirado das ideias de tristeza e felicidade?

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Como Surgiu a Oração de São Francisco

Olha que nem sou católica, mas é que amo essa prece, e como tudo que está escrito aqui, faz parte desse quebra-cabeça que faz parte de mim, então aqui vai mais um pedacinho do que sou ...
qd fiz a Faculdade de História, uma das coisas que mais quis estudar durante as cadeiras da Idade Média foi a bio do Francisco, que nasceu em Assis... e vcs sabem de uma coisa super interessante? fiquei bem frustrada, pq fui conhecendo um monte de coisas sobre ele, uma delas é que ele pessoalmente nunca escreveu praticamente nada, que nem Platão, que tinha Sócrates como discípulo (ou vice-versa, eu sempre me confundo,rsrs...) e foi um dos seguidores do Francisco que compilou grande parte de tudo que ele falava ou fazia, inclusive as belas preces que ele proferia... comprei um livro de um dos mais proeminentes historiadores franceses, Le Goff, expert em História Medieval, e em nenhum trecho tem a famosa prece que tanto amamos... e minha frustração foi imensa, só crescia...

e desandei a pesquisar mais.... sem querer parecer carola na faculdade, fui correr atrás de bibliografia cada vez mais, até que me deparei com um livro do Boff, só sobre essa oração, contando que ela nunca, de verdade, foi proferida por ele, mas encarnava de forma tão perfeita os ideais franciscanos que foi atribuída imediatamente a esse grande espírito... para mim, ela é perfeita, precisa e preciosa... mais uma razão pra eu acreditar que há mais coisas entre a terra o céu que possa crer nossa vã filosofia...
o certo é que já está provado por pesquisas, que a prece, qualquer uma, muda nossos padrões mentais, fortalece nossa alma e faz um bem danado...


Não raro, as grandes coisas têm origem humilde. O Amazonas, o maior rio da Terra em volume de água, nasce de uma insignificante fonte entre duas montanhas de mais de cinco mil metros de altura ao sul de Cuzco, no Peru. O São Francisco, o rio da unidade nacional, se origina de uma pequeníssima fonte no alto da Serra da Canastra em Minas Gerais. Lentamente as águas vão se somando a outras águas até formarem rios caudalosos que deságuam no vasto mar.
Algo semelhante ocorreu com a Oração pela Paz. Nasceu anônima, na periferia, sem que ninguém lhe desse importância especial. Aos poucos, seu conteúdo belo e inspirador foi acalorando corações e acendendo mentes. Como um raio de luz que segue seu curso pelos espaços sem fim, a Oração pela paz foi se difundindo até ganhar o mundo inteiro.
Nela tudo é verdadeiro e convincente. É tão simples que pode ser compreendida por todos. É tão recitada por crianças budistas no Japão, por monges taoístas no Tibete, por mulçumanos no Cairo, por babalorixás em Angola, por papas cristãos em Roma, pelos fiéis das comunidades de base na América Latina e até por operários em manifestações e greves. Todos sentem que esta oração traduz, de forma extremamente inspirada, desejos ancestrais da humanidade. Ela vem ao encontro de demandas por paz e tolerância, imprescindíveis para a perigosa travessia que fazemos atualmente do local ao global, do nacional ao planetário, das muitas sociedades a uma única sociedade mundial.
Quando aparecem orações com tal nível de inspiração e de universalidade, é sinal de que têm como autor o próprio Espírito Santo. Ele costuma atuar de forma anônima na suavidade dos corações abertos ao divino. Assim deve ter atuado no autor desconhecido que, cheio de ardor espiritual, deu forma à oração posteriormente atribuída a São Francisco de Assis.
A Oração pela Paz apareceu pela primeira vez em 1913 numa pequena revista local da Normandia, na França. Vinha sem referência de autor, transcrita de uma outra revista tão insignificante, que nem deixou sinal da história, pois não foi encontrada em nenhum arquivo da França.

Da periferia para o centro

A Oração de São Francisco se universalizou a partir de sua publicação no Ossevatore Romano, órgão oficioso do Vaticano, no dia 20 de janeiro de 1916. No dia 28 de janeiro do mesmo ano foi publicada no conhecido diário católico francês La Croix. Era o tempo da Primeira Guerra Mundial (1914-1918) e por todas as partes faziam-se orações pela paz.

Como a Oração pela Paz ou a Oração de São Francisco chegou ao Vaticano para daí começar sua difusão pelo mundo?

Por toda a cristandade, nas dioceses e paróquias, faziam-se fervorosas orações pelo fim da guerra que devastava e envergonhava a Europa, berço da assim chamada civilização ocidental e cristã. O fundador do semanário católico Souvenir Normand, Marquês de la Rochetulon, enviara ao Papa Bento XV várias orações pela paz. Não se sabe se eram de sua autoria ou se as recolhera entre as que circulavam no meio do povo.
É sábio que essas orações chegaram ao Papa porque existe o bilhete do importante Cardeal Gasparri agradecendo ao Marquês de la Rochetulon em nome de Bento XV. Aí se faz interessante revelação: todas as orações, inclusive essa de São Francisco, eram dirigidas ao Sagrado Coração de Jesus, devoção introduzida em toda a Igreja no final do século XIX.
Com essa devoção ao Sagrado Coração de Jesus se pretendia resgatar uma dimensão esquecida no cristianismo tradicional: a riqueza da santa humanidade de Jesus, de seu amor incondicional, de sua misericórdia, de seu enternecimento para com todos, especialmente para com os pobres e os pecadores, as crianças e as mulheres.

De Oração pela Paz a Oração de São Francisco

Por que essa Oração pela Paz passou a ser chamada de “Oração de São Francisco”?
Por uma simples casualidade histórica que, no entanto, encerra um significado revelador. Pois há entre as características do Coração de Jesus e as características de São Francisco uma conaturalidade surpreendente. Não sem razão São Francisco é chamado de “o Primeiro depois do Único” ou o Alter Christus, o outro Cristo.
Pouco tempo depois da publicação da oração pela Paz em Roma, um franciscano, Visitador da Ordem Terceira Secular de Reims, na França, mandou imprimir um cartão tento de um lado a figura de São Francisco com a regra da Ordem Terceira Secular na mão e do outro a Oração pela Paz, com a indicação da fonte: Souvenir Normand. No final uma pequena frase dizia: “essa oração resume os ideais franciscanos e, ao mesmo tempo, representa uma resposta às urgências de nosso tempo”. Essa pequena frase se tornou o elo revelador. Permitiu que a oração deixasse de ser apenas Oração pela Paz para ser também conhecida como “Oração de São Francisco” ou a Oração da Paz de São Francisco de Assis.
Assim, essa oração passou a ser, simultaneamente, um resumo da devoção ao Sagrado Coração de Jesus e da espiritualidade franciscana. Curiosamente a oração de consagração ao Sagrado Coração de Jesus publicada por Leão XIII em 1899 tem uma estrutura semelhante à atual Oração de São Francisco, especialmente as tríades: discórdia/união, erro/verdade, trevas/luz.
As demais contraposições ódio/amor, ofensa/perdão, dúvida/fé, desespero/esperança, tristeza/alegria estão ancoradas na pregação de Jesus e na sua prática libertadora. Sua presença e sua palavra transformam a realidade: onde há ódio surge o amor, onde há ofensa aparece o perdão, onde há dúvida irrompe a fé, onde há desespero nasce a esperança e onde há tristeza sorri a alegria.
A segunda parte – “fazei que eu procure mais consolar, que ser consolado; compreender, que ser compreendido; amar, que ser amado” – constitui uma característica fundamental do cristianismo, a completa abnegação de si mesmo e daquilo que nos é mais caro para poder radicalmente servir o outro.
A terceira e última parte – “pois é dando que se recebe; é perdoando que se é perdoado; e é morrendo que se vive para a vida eterna” – é igualmente fundada nos textos do Evangelho:

- daí e vos será dado (Lc 6, 38)
- perdoai e sereis perdoados (Lc 6, 37)
- quem procurar preservar a vida, há de perde-la, e quem a perder, há de conserva-la (Lc 17,33)
- quem ama sua vida acabará perdendo-a; mas quem odiar sua ida neste mundo vai guardá-la para a vida eterna (Jô 12, 25)

Conclusão: o grande parentesco entre a devoção ao Sagrado Coração de Jesus e a devoção a São Francisco de Assis permitiu que as características de uma fossem atribuídas ao outro. Isso nos faz lembrar a famosa frase do Padre Antônio Vieira em seu sermão sobre as Chagas de São Francisco: “Vesti Cristo e tereis Francisco, desvesti Francisco e tereis Cristo.”

Essa conaturalidade aparece, por exemplo, nos escritos de São Francisco chamados Admoestações, em especial na de número 27. Aí encontramos nítido o espírito da Oração pela Paz:

“Onde há amor e sabedoria não há medo nem ignorância.
Onde há paciência e humildade não há ira nem perturbação.
Onde há pobreza e alegria não há cobiça nem avareza.
Onde há paz e meditação não há desassossegado nem dissipação.
Onde o temor de Deus guarda a casa, o inimigo não encontra portas.
Onde há misericórdia e descrição não há excesso nem dureza de coração.”
Aparece também na oração de um dos discípulos mais místicos e profundos de São Francisco, o beato Egídio de Assis:

“Se amares, serás amado;
Se venerares, serás venerado;
Se servires, serás servido;
Se tratares bem os outros, serás também bem tratado.
Entretanto,
Bem-aventurado aquele que ama sem ser amado,
Bem-aventurado aquele que venera sem ser venerado,
Bem-aventurado aquele que serve ser servido,
Bem-aventurado aquele que trata bem a todos sem ser bem tratado.”

Eis espelhada aqui a força do amor incondicional. Amor pelo valor intrínseco do ato de amar, sem esperar qualquer retribuição. Esse é o amor que Deus tem para com seus filhos e filhas, mesmo ingratos e maus. Esse, o amor do Sagrado Coração de Jesus. Esse, o amor que incandesceu São Francisco. Esse, o amor que consome todos os místicos como São João da Cruz ou o Sufi Rumi. Esse, o amor que salva eternamente qualquer pessoa, funda a paz, redime o mundo e constitui o sentido secreto do universo.

Fonte: Livro A Oração de São Francisco, Leonardo Boff.

http://www.matrizsaofrancisco.com.br/temasview.php?id=5

terça-feira, 21 de setembro de 2010

O Dom de Esquecer....

A gente não sabe como se lembra das coisas, nem como as esquece... Noberto Bobbio tem uma frase que diz que a gente é o que a gente lembra. E quase todas as ciências psis tb (pensando bem, quase toda a área humana do conhecimento é baseada nas memórias, reminiscências, no que é passado de geração pra geração, na Biblioteca Perdida de Alexandria, na sabedoria acumulada ao longo do nosso processo Histórico,  and so on... ).

O mais muderno agora, e que a neurociência está provando, é que nossa memória está programada também para surpreendentemente esquecer.  Que o saudável é não se lembrar de tuuudo, precisamos esquecer coisas,  e de verdade são as coisas  banais, do  cotidiano, senão soçobramos com as informações inúteis que iríamos acumular. Se alguém me perguntar a roupa que o paciente estava vestindo na consulta da semana passada, provavelmente eu vou perguntar se ele até estava vestido, rsrs....  Mas sou capaz de lembrar coisas que a gente conversou há um, dois, três anos atrás.  De um livro que eu li, dez anos depois, até da posição na página que o trecho que eu estava procurando por alto pode estar tal citação... Coisas desde uma infância muito precoce, meu irmão chegando da maternidade, quando eu tinha uns dois anos de idade.

Mas o que faz a gente "escolher" o que quer exatamente guardar?  O principal fator é a carga emocional atrelada a um evento.  Outro é a repetição, quantas vezes aquele fato aconteceu com a gente, ou a gente repetiu um movimento, uma função, uma respiração, um olhar, uma palavra...  Outras vezes somos escolhidos pela vida, pra tentar entender um porquê, uma perda, uma dor, uma lágrima, algo que não paramos de pensar e não entendemos racionalmente, mas o sentimento não sai do nosso peito, até que ele vai desaparecendo de mansinho, deixando pra trás somente uma cicatriz que vai abrandando com o tempo, até nos esquecermos que ela existe, como uma memória, que ocupa algum lugar, em algum momento, fugaz.

Betty Milan escreveu na Veja de 01/09/2010 que "um dos maiores desconsolos é a perda do ser amado. O desconsolo da perda. Só superamos a tristeza quando entendemos que perder não é sinônimo de não ter... fazer o luto é entender que a morte não anula a existência... [podemos] rememorar em vez de lamentar a falta."  Adorei tirar esses pensamentos do artigo dela e alinhar com esses pensamentos sobre a memória.  Dá uma idéia da continuidade da existência, da luta diária que temos, em prol da vida que perdura, e perdurará, mesmo que esse meu EU não mais aqui esteja.

terça-feira, 14 de setembro de 2010

Ai de nós, quem mandou?

MARTHA MEDEIROS

Mulheres ganham salários menores do que os dos homens, e líderes feministas seguem lutando para reverter essa injustiça. Mas já não sei se é boa ideia continuar batalhando por igualdade. Depois de ler o resultado de uma recente pesquisa feita pela Universidade de Harvard, fiquei inclinada a pensar que talvez seja melhor manter as coisas como estão. A pesquisa chama-se Schooling Can’t Buy Me Love (Escolaridade não pode me comprar amor) e confirma que mulheres que estudam mais acabam progredindo e, quanto mais bem-sucedidas, menores as chances de se casar. Os homens ainda não estão preparados para abrir mão da superioridade que o papel de provedor lhes confere. E mesmo os mais antenados, que apoiam que suas mulheres sejam independentes, ficam inseguros se elas tiverem cargos de chefia e muita visibilidade. Ganhar dinheiro, tudo bem, mas aparecer mais do que eles já é desaforo.

Beleza. O que vamos dizer para nossas filhas? Estudem, mas fazer doutorado e mestrado é exagero, antes um bom curso de culinária. Tenham opiniões próprias quando conversarem com as amigas, mas em casa digam só “ahã”, para não se incomodar. Usem seu dinheiro para comprar roupas, pulseiras e esmaltes, esqueçam o investimento em viagens, teatro e livros. E, na hora de se declararem, troquem o “eu te amo” por “eu preciso de você”, “eu não sou ninguém sem você”, “eu não valho meio quilo de alcatra sem você”. Homens querem se sentir necessários. Só amados não serve.
Que encrenca que as feministas nos arranjaram. Estimularam o pensamento livre, a autoestima, a produtividade e a alegria de trilhar um caminho condizente com nosso potencial. De apêndices dos nossos pais e maridos, passamos a ter um nome próprio e uma vida própria, e acreditamos que isso seria excelente para todos os envolvidos, afinal, os sentimentos ficaram mais honestos, e com eles os relacionamentos. O amor deixou de ser o álibi para um lucrativo arranjo social. Passou a ser mais espontâneo, e as carências de homens e mulheres foram unificadas, já que todos precisam uns dos outros para dividir angústias, trocar carinho, pedir apoio, confessar fraquezas, unir forças no momento das dificuldades. Todos se precisam da mesma forma, não de formas distintas. Mas há quem defenda que homem só precisa de paparico e mulher de quem tome conta dela, punto e basta.
Nunca imaginei que em 2010 ainda estaria escrevendo sobre isso. Achei que os homens já tivessem percebido o quanto ganham em ter uma mulher inteira a seu lado, e não um bibelô. Acreditei que a competitividade tivesse dado lugar a um companheirismo mais saudável e excitante, onde todos pudessem se orgulhar dos seus avanços e se apoiar nas quedas, mas que iludida: isso é coisa pra meia dúzia de emancipada, filha. Essas mulheres aí que não cozinham, não passam, não lavam, só evoluem, essas não são exemplo pra ninguém, são umas coitadas de umas infelizes que pagam as contas e ainda se acham divertidas, se fazem de inteligentes, querem bater perna em Nova York, pois vão arder no fogo do inferno, vão amargar na solidão, vão se arrepender de ter lido aquela Simone de Beauvoir, vão morrer abraçadas aos seus laptops, aqui se faz, aqui se paga, escreve aí.

Tamo ferrada.

O Globo - 12/09/2010



mesmo assim não me troco por nada, por pagar esse preço até injusto, pela minha lucidez, por não viver em fugas, nas mil armadilhas que a ilusão de uma pseudoexistência pode criar de felicidade, de jogos de variadas formas e texturas, pois já vivi a loucura até a fronteira do possível e hoje estou aqui, rindo do que posso, chorando as vezes, mas verdadeira comigo mesmo até onde eu der meu último suspiro. Eu sou, verdadeiramente, ESPECIAL!, sou uma sobrevivente de acontecimentos inenaráveis, de angústias impensáveis, de horrores inconfessáveis, de traumas e violências profundas... e tenho uma doçura, sensibilidade, afabilidade, que não permito que ninguém me tire. A luz e o amor que carrego, não deixo que seja conspurcado pelo horror que eu tenha vivido, pq passando pela noite mais escura, é que se pode reconhecer a dádiva do amanhecer.  Ainda busco um amor...

PS: e ainda sei lavar, passar e cozinho direitinho... minha casa é bunitinha, desenhei eu mesma meus móveis, isto é, sou relativamente prendada... pago todas as minhas contas, tenho meu carro, e pelo que converso em relação a todas as minhas amigas, consegui vencer a maioria dos tabus sexuais que tanto atrapalham as relações, se isso não é auto-ironia... vou procurar então melhor outra definição pra essa expressão, rsrs... 

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

MÚSICAS

Não vivo sem música...
mais música, a melodia em si do que as letras... mais as letras de algumas músicas em inglês do que em português... não por pedantismo... mas por ter aprendido o idioma assim mesmo, ter estudado dessa maneira, ter adquirido vocabulário, lendo muito livros, tanto que quase não sei "ouvir", isto é, tirar letra de música, mas decorei muitas letras ao longo da vida...
Li Shakespeare no original, pra passar nas provas finais da Cultura, novamente pra ter fluência e maestria, proficiência no idioma, como eles chamam, e como a prova é chamada - proficiency in english- e da música tiro muito para a vida...
Uma vez ouvi essa definição sobre essa música: o mais belo hino à amizade que já foi escrito...
mas ao mesmo tempo ela descreve o que Santa Teresa D'Avila chama do lado negro da alma, o estado de dor e sofrimento, onde entra o consolo que só o ombro amigo sabe dar. A música é "Like a bridge over troubled water" de Simon e Garfunkel, e diz mais ou menos assim:


BRIDGE OVER TROUBLED WATER
( Ponte sobre águas revoltas )
PAUL SIMON & ART GARFUNKEL - 1970

WHEN YOU'RE WEARY, FEELING SMALL
Quando você estiver exausta, sentindo-se deprimida
WHEN TEARS ARE IN YOUR EYES
Quando as lágrimas estiverem em seus olhos
I WILL DRY THEM ALL
Eu as enxugarei todas
I'M ON YOUR SIDE
Eu estou ao seu lado
OH, WHEN TIMES GET ROUGH
Oh, quando os tempos ficarem difíceis
AND FRIENDS JUST CAN'T BE FOUND
E os amigos não mais puderem ser encontrados
LIKE A BRIDGE OVER TROUBLED WATER
Como uma ponte sobre águas revoltas
I WILL LAY ME DOWN
Eu me deitarei
LIKE A BRIDGE OVER TROUBLED WATER
Como uma ponte sobre águas revoltas
I WILL LAY ME DOWN
Eu me deitarei
WHEN YOU'RE DOWN AND OUT
Quando você estiver chateada e fora
WHEN YOU'RE ON THE STREET
Quando você estiver na rua
WHEN EVENING FALLS SO HARD
Quando a noite descer pesadamente
I WILL CONFORT YOU
Eu a confortarei
I'LL TAKE YOUR PART
Eu a ajudarei
OH, WHEN DARKNESS COMES
Oh, quando a escuridão vier
AND PAIN IS ALL AROUND
E a dor estiver por perto
LIKE A BRIDGE OVER TROUBLED WATER
Como uma ponte sobre águas revoltas
I WILL LAY ME DOWN
Eu me deitarei
LIKE A BRIDGE OVER TROUBLED WATER
Como uma ponte sobre águas revoltas
I WILL LAY ME DOWN
Eu me deitarei
SAIL ON SILVER GIRL
Continue a viver em brilho
SAIL ON BY
Continue vivendo
YOUR TIME HAS COME TO SHINE
Sua hora chegou para brilhar
ALL YOUR DREAMS ARE ON THEIR WAY
Todos os seus sonhos estão a caminho
SEE HOW THEY SHINE
Veja como eles brilham
AND IF YOU NEED A FRIEND
E se você precisar de um amigo
I'M SAILING RIGHT BEHIND
Eu estarei logo atrás
LIKE A BRIDGE OVER TROUBLED WATER
Como uma ponte sobre águas revoltas
I WILL EASY YOUR MIND
Eu acalmarei sua mente
LIKE A BRIDGE OVER TROUBLED WATER
Como uma ponte sobre águas revoltas
I WILL EASY YOUR MIND
Eu acalmarei sua mente

DESJEJUM CABEÇA


Em novo livro, o britânico Robert Rowland propõe analisar cada ato do cotidiano de acordo com teorias filosóficas. Para Rowland, pensar sobre momentos aparentemente banais pode ajudar a entender questões essenciais de nossas vidas
A monotonia daqueles cafés da manhã regados a mamão, leite desnatado e pão integral está com os dias contados. A partir de agora pode-se fazer o desjejum filosofando. É só dar um pulo na livraria mais próxima e comprar “Café da manhã com Sócrates” (Rocco), do filósofo bonitão Robert Rowland Smith, que decidiu botar pelo em ovo.
Inspirado na máxima do filósofo ateniense “Não vale a pena viver uma vida não examinada”, o autor acha um desperdício uma pessoa ficar pensando na morte da bezerra enquanto se alimenta. E sugere que o leitor compreenda o seu cotidiano de A a Z. Nada de caminhar para o trabalho, ir à academia, tomar banho ou ver televisão sem entender porque isso está acontecendo. Para ele, esses momentos aparentemente tão banais são preciosos para que possamos entender questões essenciais em nossas vidas. Assim, ele propõe uma viagem guiada pela história da filosofia.
No livro, publicado em vários países, como Espanha, Itália e Alemanha, o autor imagina o que diriam os maiores pensadores de todos os tempos sobre os momentos-chave do dia a dia. Desde a hora em que acordamos (e passamos a existir, como argumentaria Descartes), até quando adormecemos (com Jung por companhia, a explicar-nos o porquê dos nossos sonhos). “O livro mostra como as maiores ideias da história se relacionam com a forma que você vive sua vida e como você pode pensá-la com mais profundidade” — explica o autor.

O ego adora uma rotina

Dividido em 18 capítulos, como “Acordando”, “Discutindo a relação”, “Matando o trabalho”, “Fazendo sexo” até “Dormindo e Sonhando”, o livro nutre o leitor com questões de sociologia, psicologia e política que estão implícitas em atos do cotidiano, aparentemente sem a menor relevância. No capítulo “Arrumando-se”, ele observa que o ego adora uma rotina e explica que por isso alguns homens sempre abotoam a camisa de cima para baixo, em vez de baixo para cima, ou vestem as cuecas antes das meias. E você, já pensou em entrar no escritório do seu chefe, dizer o que pensa dele e largar o emprego deixando seus companheiros morrendo de inveja? Em “No trabalho”, o leitor vai compreender que essa fantasia revela três coisas: primeira, que ele está no emprego errado; segunda, que, se não transformou esse desejo em realidade, é um covarde; e terceira, ele é uma pessoa que precisa de segurança para poder cumprir seus compromissos financeiros e não possui reserva suficiente para pagá-los. “Você e dois terços da população” — brinca o autor.
Vai aprender, ainda, que para Michel Foucault, sua rotina de exercícios é uma forma de controle estatal; para Lacan provar roupas numa loja pode ser um alerta sobre os perigos do narcisismo. E não trabalhe demais, please, porque a qualquer momento Marx pode surgir na sua frente para alertar que você deve deixar de ser escravo do seu salário. Enfim, nem no mais comezinho cotidiano nada é o que parece. Mesmo quando a noite chegar e você ficar animada para fazer sexo com seu namorado, não pense que é fácil não, também é preciso pôr a cabeça para funcionar. Não é você que faz sexo, filosoficamente o sexo é que nos faz.
Socorro, eu só quero um mísero orgasmo.

Bety Orsini
Jornal: O Globo
Caderno: Ela 
28/08/2010