sexta-feira, 31 de agosto de 2012

Coragem - MARTHA MEDEIROS

"A pior coisa do mundo é a pessoa não ter coragem na vida.” Pincei essa frase do relato de uma moça chamada Florescelia, nascida no Ceará e que passou (e vem passando) poucas e boas: a morte da mãe quando tinha dois anos, uma madrasta cruel, uma gravidez prematura, a perda do único homem que amou, uma vida sem porto fixo, sem emprego fixo, mas sonhos diversos, que lhe servem de sustentação.

Ela segue em frente porque tem o combustível que necessitamos para trilhar o longo caminho desde o nascimento até a morte. Coragem.

Quando eu era pequena, achava que coragem era o sentimento que designava o ímpeto de fazer coisas perigosas, e por perigoso eu entendia, por exemplo, andar de tobogã, aquela rampa alta e ondulada em que a gente descia sentada sobre um saco de algodão ou coisa parecida.

Por volta dos nove anos, decidi descer o tobogã, mas na hora H, amarelei. Faltou coragem. Assim como faltou também no dia em que meus pais resolveram ir até a Ilha dos Lobos, em Torres, num barco de pescador. No momento de subir no barco, desisti. Foram meu pai, minha mãe, meu irmão, e eu retornei sozinha, caminhando pela praia, até a casa da vó.

Muita coragem me faltou na infância: até para colar durante as provas eu ficava nervosa. Mentir para pai e mãe, nem pensar. Ir de bicicleta até ruas muito distantes de casa, não me atrevia. Travada desse jeito, desconfiava que meu futuro seria bem diferente do das minhas amigas.

Até que cresci e segui medrosa para andar de helicóptero, escalar vulcões, descer corredeiras d’água. No entanto, aos poucos fui descobrindo que mais importante do que ter coragem para aventuras de fim de semana, era ter coragem para aventuras mais definitivas, como a de mudar o rumo da minha vida se preciso fosse. Enfrentar helicópteros, vulcões, corredeiras e tobogãs exige apenas que tenhamos um bom relacionamento com a adrenalina.

Coragem, mesmo, é preciso para terminar um relacionamento, trocar de profissão, abandonar um país que não atende nossos anseios, dizer não para propostas lucrativas porém vampirescas, optar por um caminho diferente do da boiada, confiar mais na intuição do que em estatísticas, arriscar-se a decepções para conhecer o que existe do outro lado da vida convencional. E, principalmente, coragem para enfrentar a própria solidão e descobrir o quanto ela fortalece o ser humano.

Não subi no barco quando criança – e não gosto de barcos até hoje. Vi minha família sair em expedição pelo mar e voltei sozinha pela praia, uma criança ainda, caminhando em meio ao povo, acreditando que era medrosa. Mas o que parecia medo era a coragem me dando as boas-vindas, me acompanhando naquele recuo solitário, quando aprendi que toda escolha requer ousadia.

Zero Hora
17/06/2012 

quarta-feira, 29 de agosto de 2012

O insustentável peso do ser - Quando emagrecer é perder mais do que quilos - por Eliane Brum


26/04/2010 - 08:32
atualizado em 27/04/2010 - 08:19


Quando emagrecer é perder mais do que quilos


 Reprodução
ELIANE BRUM


Volto ao tema do que é ser gordo neste mundo porque tenho cada vez mais convicção de que compreendê-lo é chave para acessar nossa época. Somos aturdidos, invadidos e bombardeados por reportagens sobre dietas, conversas sobre dietas, receitas de dietas, livros de dietas, profissionais especializados em dietas e, agora, reality shows com gente tentando emagrecer e eventualmente fracassando. Quando olhamos para alguém, comece a reparar, nosso primeiro ou no máximo segundo olhar avalia se a pessoa é gorda ou magra. Quando descrevemos alguém – e também quando criticamos ou xingamos –, a gordura é um dos primeiros tópicos. Se tivéssemos acesso às promessas feitas hoje a santos ou outras entidades místicas, eu apostaria que a maioria está com a agenda lotada de pedidos de devotos implorando pelos milagres dos quilos a menos.

Pense por um segundo: o quanto estar ou não acima do peso ocupa suas conversas com amigos e familiares, as preocupações do seu cotidiano, o tempo da sua vida?

Queremos acreditar que é uma obviedade desejar ser magro. Que não há outro jeito de ser na vida. E que é “natural” nossa preocupação com o peso e com as dietas. Será? Desde que nos tornamos uma espécie inscrita na cultura, não há nada de natural em nós, exceto o funcionamento biológico do nosso corpo – pelo menos até onde a ciência ainda não conseguiu interferir. Se assim é, o que o valor da magreza, que vai muito além de um padrão de beleza, diz sobre nós? Ou, visto pelo avesso, o que a rejeição à gordura significa?

É muito menos óbvio do que parece. O argumento da saúde é sempre o primeiro a surgir, por ser supostamente indiscutível e vir embalado nas melhores intenções. Mas, acredite, nem todos os gordos são doentes. Ou obesos. Alguns exibem ótimos exames de colesterol e triglicérides, tem pressão normal e bom funcionamento do coração. Nem toda gordura é doença. E, mesmo quando se torna doença, a saúde não é a única medida para avaliar a qualidade de uma vida humana.

Para ampliar nossa compreensão sobre algo que perpassa nossa vida, entrevistei uma mulher vista como “gorda”. Há algumas semanas, ela iniciou uma dieta. Neste momento, emagrecer é um projeto em curso em sua vida. Ela tem 37 anos, 1m69 de altura e pesava 84,5 quilos quando iniciou o regime. É bem sucedida no que faz e tem amplo reconhecimento profissional. Exames médicos mostraram que não tem nenhum problema de saúde ligado ao peso. Quis entrevistá-la porque ela ousa ir além do lugar comum e faz uma reflexão profunda sobre as implicações de sua decisão de emagrecer.


Para esta mulher, fazer dieta é uma forma de violência. Mesmo assim, procurou uma nutricionista e seguiu em frente. Com generosidade, ela nos explica suas razões. E o que nos diz fala não só dela, mas de todos. Fala não apenas de gordura e de dieta, mas de aceitação. Do lugar do outro na nossa vida – e da complexidade do olhar que nos reflete, mesmo quando não nos enxerga ou só enxerga uma parte de nós.

Esta é uma conversa sobre escolhas. E um convite para aumentar o número de pontos de interrogação no nosso jeito de ver o mundo.

Eu: Quando começamos a conversar, você falou que acha assustador ser tratada como obesa mórbida – e isso usando uma calça 44. Como é isso?
Ela: O nível de magreza esperado hoje é tão elevado que, por vezes, sou cobrada como se meu peso ultrapassasse os 100 quilos e eu sequer conseguisse comprar roupas em lojas não especializadas, o que está bem longe de ser verdade. Outro dia estava no telefone com uma prima que comemorava a minha iniciativa de fazer dieta e exercícios físicos. De repente, no meio da conversa, ela diz: “Ainda bem que agora você resolveu emagrecer num projeto de longo prazo. Porque, se você chegasse aos 40 anos desse jeito, estaria fodida! Fo-di-da, entendeu?”.Fiquei pensando que estaria fodida se não soubesse quem eu sou e qual o meu eixo nessa existência. Estaria fodida se não tivesse uma profissão que adoro, que ajuda a mudar o mundo – para melhor – e que me permite sustento próprio e alheio desde os 21 anos. Estaria fodida se não tivesse pais amorosos e amigos tão queridos para partilhar a vida. Estaria fodida se vivesse na miséria, em condições indignas, sem acesso à educação e à saúde, como boa parte da população brasileira. Estaria fodida se não tivesse experimentado um casamento bacana ou se, depois de divorciada, tivesse me metido em relações de afeto abusivas, como não é raro acontecer com mulheres carentes. Estaria fodida se não tivesse equilíbrio emocional ou se passasse fome ou se tivesse sido vítima de violência física ou se fosse alguém sem um pingo de caráter. Por qualquer dessas coisas eu realmente estaria fodida. Agora, fo-di-da por pesar 80 quilos? Como assim, gente?


Eu: Você se descobriu gorda na universidade. Como foi lidar com o sofrimento das primeiras rejeições?
Ela:
Foi ruim, como não é difícil imaginar. Quando você ainda é insegura sobre “o que é” ou sobre “quem está se tornando”, e alguém a rejeita pelo fato de ser gorda, a sensação é de que você toda não tem valor algum. É quase impossível entender o quanto de dificuldade do outro tem ali, o quanto não é possível dar ao outro o poder de definir quem você é e outras coisas que na vida adulta tornam-se claras. Quando se é jovem, um minuto de rejeição reduz você a um monte de massa gordurosa amorfa... A grande dificuldade é construir uma identidade sobre a tal massa. O sofrimento pode até não ser enorme, nem destruidor para algumas pessoas – meu caso. Mas um tanto dele é inevitável.

Eu: Qual foi a primeira humilhação por causa do peso?
Ela:
Lembro especificamente de uma. Considero que, na época, não estava realmente obesa. Devia pesar uns 70 quilos. Viajei para a praia, com duas amigas. Um dia, saímos de carro para dar uma volta, era eu quem dirigia. Chegaram dois rapazes próximos da janela, e começamos a conversar. De repente, um deles olha pra mim, aponta e diz: “E essa barriguinha sobrando aí?”. Os dois deram uma bela gargalhada, com um prazer irônico e meio sádico. Não deixei ninguém perceber, mas me senti um lixo.

Eu: Como é ser olhada como se tudo o que há em você fosse excesso de peso, como se gorda fosse tudo o que você é?
Ela:
A minha sensação é de estranheza total, de não entendimento real desse modus vivendi. Não há empatia que eu tente que me faça absorver o peso como critério de exclusão de pessoas. É tão absurdo quanto a discriminação por raça, dinheiro ou religião. Não consigo aceitar. No caso do peso, posso até me render aos efeitos da discriminação e emagrecer, mas dentro de mim não consigo aceitar esse critério de exclusão. Lembro de uma história que foi muito marcante. Um tempo depois de me divorciar, cheguei ao trabalho e ouvi dois colegas conversando sobre mim, sem que se dessem conta da minha presença. Um deles disse: “Se ela emagrecesse uns dez quilos, não ficaria nem um segundo solteira no mercado...” Fiquei arrasada. Saí de fininho, com um nó na garganta e pensando: “Que desgraça de mundo é esse em que vivo?”

Eu: E como é não ser olhada com desejo por um homem?
Ela:
Recentemente um cara, inteligente e muito divertido, depois de algumas cervejas soltou esta: “De onde saiu uma mulher como você, criatura? Meu Deus...” (com ar de interesse e até meio embasbacado). E, em seguida: “Agora, me diz por que a gente não consegue tudo em uma mulher só? No fundo, eu sonho com uma mistura de Catherine Deneuve e Simone de Beauvoir...” Bem. Não preciso dizer que eu era a Simone de Beauvoir da história, certo?

Eu: Aconteceu de você desejar muito um homem e claramente ele não conseguir ficar com você porque você é gorda?
Ela:
Já aconteceu de reencontrar uma antiga paixão, com quem havia retomado contato por MSN, telefone e email. Ficou claro que queríamos nos encontrar pessoalmente, com os típicos e deliciosos jogos de sedução em andamento. Ele resolveu ir até a minha cidade, com a desculpa de visitar um amigo. Menos de três horas depois que havia chegado, já estávamos almoçando juntos. E esta foi a última vez em que nos encontramos durante os dias em que permaneceu aqui. Ele é um cara muito bonito. A última vez que havia me visto eu estava com uns 10 quilos a menos e, não tenho a menor dúvida, me dispensou por estar acima do peso. Estar gorda destruiu as chances de reaproximação, não importa o quanto tenha sido boa, sedutora e divertida a conversa pessoal. O sentimento é de raiva. E de indignação. Que culminam numa grande “menos valia”. Uma mulher pode até ser forte. Mas não é deus.

Eu: Você fala neste primeiro olhar, que acontece numa festa, na boate, em algum lugar público. O olhar do desejo, antes de saber se a pessoa é legal ou não, inteligente ou não. Como é para você? Você tem desejo por um homem acima do peso estabelecido como normal? Ou, parodiando seu exemplo, você também quer uma mistura de Jean-Paul Sartre com Alain Delon? Você se sentiria atraída por Sartre antes da primeira palavra trocada?
Ela:
Meu último namorado era mais gordo do que eu e tinha uma respeitável barriguinha. Meu ex-marido era magro. Já fiquei com gordos, obesos, magros, magérrimos. Não tenho preconceito quanto a isso. Tenho cá meu fraco por sedutores (e não é exatamente o peso que importa nesse caso), o que venho mantendo sob estrito controle racional. Numa boate, o tipo que primeiro chama minha atenção, antes de conversar, é, em geral, um homem moreno ou negro, com traços fortes e não perfeitos. O que é capaz de definir campeonato é o fato de ele ser espirituoso e com alguma “pegada”. Não é um Sartre que procuro. Ele não foi nada bacana com a Simone... Quanto a Alain Delon, confesso meus pré(e pós)-conceitos: homem muito bonito, em regra, tem de se esforçar pouco e, com isso, não desenvolve ao longo da vida habilidades importantes. As eventuais exceções só justificam a regra.

Eu: Como é estar comendo um doce e sentir o olhar repressor do outro?
Ela:
Já experimentei de tudo, desde o olhar materno até o do vizinho de mesa no shopping... Os olhares desconhecidos não têm importância. Mas a reprovação de alguém querido é sofrida.

Eu: Por que você acha que a sociedade tem tanta dificuldade com as pessoas acima do peso estabelecido como normal?

Ela:
Acho que todas as sociedades sempre tiveram um padrão de beleza estabelecido e sempre foram cruéis com quem não atende a este padrão. A exclusão com o diferente-marginal não é algo privativo do mundo contemporâneo. A questão é que, hoje, na classe média e alta da maioria dos países ocidentais, o belo equivale essencialmente à magreza. Ser gordo significa se tornar alvo da exclusão do diferente, que é própria das organizações sociais. Algo cultural e praticamente inevitável. Em regra, o ser humano, quando se depara com a diferença, se sente ameaçado. “Se ele está certo e é diferente de mim, isso significa que estou errado?”. Esta é a pergunta que o consciente ou o inconsciente das pessoas faz. E é isso que as impulsiona a tentar mudar ou até destruir o diferente. É muito difícil que lidem bem com a possibilidade de vários certos, a partir de várias escolhas, próprias de diversas realidades. São estas dificuldades individuais com a diferença que, reunidas, formam um coletivo de exclusão, em determinados extratos sociais. Neste espaço, o coletivo excludente recai, também, sobre os obesos.

Eu: Você já se sentiu menor por ser grande?
Ela:
Já me senti uma mulher invisível. Grande, gorda e invisível...

Eu: Como é isso? Me fala um pouco mais como é ser grande, gorda e invisível...
Ela:
Você está com mais três amigas em uma boate. Duas delas são magras. Você e a outra amiga não são obesas, mas estão claramente acima do peso. Os homens passam e só olham, conversam ou coisa que o valha, espontaneamente, com as mulheres magras. Para você e a outra amiga conseguirem contato é preciso que uma conversa entre todos se dê ou alguma coisa semelhante. Aí pode vir à tona algum tipo de qualidade sua que chame a atenção. Bom humor, inteligência, simpatia... Caso contrário, é como se nós, as mulheres gordas, não existíssemos. Os homens não olham, nem falam, nem se interessam por sua existência terrena. Eles, nos próximos dias, podem até passar horas falando para os próprios amigos ou familiares que não se importam se uma mulher é gorda ou não, que querem uma mulher “real” e gente boa, que paqueram todo tipo feminino em bares e boates, mas a verdade é que, se você é gorda, o universo masculino de classe média/alta não percebe sua existência. Como eu disse: grande, gorda e invisível.

Eu: Como você sente o olhar do outro sobre você, no cotidiano?
Ela:
Especificamente sobre o olhar masculino, é ruim não senti-lo sobre o meu corpo com desejo.

Eu: Como é não sentir este olhar de desejo? Tente me contar, descrever isso...
Ela:
A sensação é de não existir. Não é que você não seja aceita, nem amada o suficiente. Você não é sequer vista como mulher. Não há um olhar masculino que a espelhe. Sem alteridade, como é possível ter o mínimo de certeza de que uma parte do feminino realmente permanece ali, onde você sente estar?

Eu: Qual é a sua relação com o espelho?
Ela:
Gosto de me olhar no espelho. Porque, sem meias palavras ou falsa modéstia, me considero realmente uma mulher bonita. Não maravilhosa ou estonteante. Mas bonita. Não é isso o principal que me define enquanto mulher. Mas faz parte do meu feminino ser bela. E gosto dessa parte. Gosto até quando estou com um vestido velhinho, meio mal arrumada... Mesmo quando estou assim, meio enfraquecida, ainda vejo algo bacana espelhado. O que me assombra é a incapacidade de as pessoas verem. Mesmo porque eu consigo ver isso nos outros, nas circunstâncias as mais variadas possíveis.

Eu: Você acha que é mais difícil para você tirar a roupa quando transa com alguém? O que passa na sua cabeça nesses momentos?
Ela:
Curiosamente, não tenho a menor dificuldade com esse momento. O que é ruim é quando o homem desaparece depois. Tenho a impressão que foi insatisfação com o meu corpo. Aí é duro de aguentar. A reação imediata é subir os muros de proteção. Haja apoio de amigos e terapia para lembrar que sair do mundo não é a melhor solução.

Eu: Se você fosse definir como, em geral, as pessoas a enxergam, que olhar seria este?
Ela:
Como pessoa, o mundo me enxerga com admiração e carinho. Mas, insisto em dizer que os homens, em regra, não me enxergam como mulher desejável. Sempre que emagreço isso muda. Por mais que me esforce, não consigo realmente entender o porquê.

Eu: Como você reage ao sentir este não-olhar de desejo masculino?
Ela:
Eu passei a fazer dieta e atividade física regular para sentir o olhar de desejo.

Eu: Você já consegue sentir a mudança de olhar e de postura com relação a você desde que começou a emagrecer?
Ela:
Bem aos poucos. Emagreci apenas quatro quilos e meio, estando acima do peso ainda. De todo modo, olhares começaram a mudar. O interessante é que a minha postura não mudou em nada. Está aqui a mesma mulher que tenta equilibrar delicadeza e força, que aprendeu a seduzir com inteligência, que é bem humorada e, para os próprios padrões de julgamento, bonita. A diferença é que, agora, até na balada tem gente cogitando dar uma chance a ela. Há tempos eu sabia que seria assim. Sempre soube que era balela aquela história que “a obesidade está na sua cabeça e quando você emagrece fica mais autoconfiante e é por isso que os homens te olham mais”. Balela. A autoconfiança sempre esteve no mesmo lugar: no próprio eixo, nos valores, na certeza interna de que 15 quilos a mais não mudam quem você é ou o quanto você se sente feminina. Muda, sim, o olhar do mundo. Só quem se sabia antes mulher e ainda se sabe depois é que pode afirmar isso. São tão poucas assim, que a teoria do “tudo está na sua cabeça” acaba prevalecendo. Mas eu sabia que não era coisa da minha cabeça, mas do espaço em que vivo. Exatamente por ter certeza disso e pelas facilidades que me render a isso traz, estou indo em frente.

Eu: A saúde é uma preocupação sua, com relação à gordura, ou não?
Ela:
Ainda não tive problemas de saúde em razão da gordura. Devo me preocupar, por fazer parte de uma família de cardiopatas, com pressão alta. A questão é que, apesar da gordura, decorrente mais da quantidade do que como e menos da qualidade dos alimentos escolhidos, estou com a saúde, do ponto de vista médico, em dia. Então, não posso fingir que estou emagrecendo por “uma questão de saúde” ou que seja realmente “por mim”. Seria mais fácil e legítimo. Mas não é verdade. (A verdade) é muito menos nobre. Eu emagreço para atender a uma exigência externa, social, de um padrão de magreza. Consciente que não é um desejo próprio genuíno, nem uma prioridade interna, nem qualquer demanda de saúde. Foi uma vontade que surgiu para atender a algo que me é totalmente externo e um tanto frívolo. Repetir isso não é fácil. Mas é honesto.

Eu: Na sua decisão de emagrecer é possível saber o quanto é desejo seu e o quanto é necessidade de ser aceita?
Ela:
Estou realmente cansada da rejeição, principalmente a masculina, por não ter o peso que se considera adequado. Correndo o risco da generalização, acho que, se um homem estiver diante de uma mulher bacana e gorda e de uma mulher com mais dificuldades emocionais e magra, ele escolherá a segunda. Também estou cansada da reprovação familiar e social por estar gorda. Eu quase posso ler nos olhares amigos: “Mas como alguém como você, disciplinada e dedicada, não emagrece logo e se mantém magra?”. Gordura tornou-se sinônimo de indolência, preguiça, pouca confiabilidade e quase falta de caráter, em determinadas esferas sociais. Neste contexto, minha escolha é 100% decorrente da necessidade de ser aceita. Na verdade, eu escolho dar este poder ao mundo em que vivo e atendê-lo. Não é um desejo meu, desejo aqui entendido como algo que vem dos próprios valores, do inconsciente, do centro. É uma escolha para facilitar a aceitação externa.

Eu: O que você perde por ser gorda?
Ela:
Perco, principalmente, o olhar de desejo masculino. E “ganho” o olhar de reprovação familiar, dos amigos, conhecidos...

Eu: E o que você perde, ao tentar emagrecer, além de quilos?
Ela:
Poderia dizer que perco algumas coisas como: 1) a maior disponibilidade de tempo que tinha para minha família (agora que priorizei fazer atividade física frequente, os horários ficaram mais apertados); 2) os convites para tomar cerveja (não consigo tomar refrigerante zero, então prefiro não aceitá-los para evitar a tentação “que desce redondo”); 3) os jantares mensais realizados em casa para os amigos, verdadeiros encontros gastronômicos; 4) a leveza com que sentava a qualquer mesa para comer (agora passo os dias contando calorias e concentrada em evitar excessos). Mas não é isso o principal. Eu perco principalmente a sensação de que guio a minha vida pelos meus valores. Perco uma das coisas que me é mais cara: a fidelidade àquilo em que acredito. E eu acredito que magreza é uma das características mais irrelevantes de uma pessoa. Acredito que usar meu precioso tempo para investir em algo tão irrelevante é um verdadeiro absurdo, com tantas outras prioridades e demandas mais importantes na vida. Acredito que a sociedade atual perdeu a noção do que é básico indispensável e do que é absolutamente supérfluo nos seres humanos. Apesar de pensar todas essas coisas, eu traio aquilo em que acredito. Torno-me parte de um conjunto burguês, oco, superficial, vazio e – por que não dizer? – até medíocre. E finjo que estou extremamente feliz, e só feliz, por emagrecer. Afinal de contas, quem é que vai acreditar na maluquice de uma mulher se sentir mal pelo simples fato de se render à pressão externa, se ela está mais magra e, teoricamente, “mais bonita”, com todos os ganhos que isso implica? Ninguém acreditaria que, no lugar de uma felicidade plena pela “beleza-magra adquirida”, eu esteja sentindo que perder a mim mesma não é nada fácil.

Eu: Se há tantas perdas, por que emagrecer? Você me escreveu que algo de você “já começou a morrer”. O que? Que luto é este?
Ela:
É o luto de quem entrou para a manada. De quem perdeu a própria individualidade, que não está na gordura, mas na capacidade de ser fiel aos próprios valores e prioridades. O luto de quem desistiu de defender a multiplicidade pós-moderna – onde haveria espaço inclusive para os obesos, ou seja, para existências e escolhas as mais diferentes possíveis – e se rendeu à verdade única moderna: a magreza. É o luto de me ver misturada a valores que sempre considerei de segunda linha, como a valorização excessiva da imagem – o que parecemos – em vez daquilo que de fato somos. Há algo da minha alegria genuína que vai se perdendo nesse processo. É como se eu pensasse: “Tudo bem, pessoal, vamos lá. Serei uma de vocês. Dá mesmo muito trabalho sustentar ser eu mesma nesse mundo”. Há algo de muito triste nessa experiência que, aliás, tem muito de desistência. E não adianta dividir essa tristeza, porque todos julgam esse sentimento como uma “defesa inconsciente típica do gordo” que, com base nela, vai acabar achando um jeito de “boicotar o emagrecimento e voltar ao lugar triste da obesidade”. Na verdade, não vou boicotar, não. Dá vontade de dizer: “Respirem aliviados e não gastem saliva. Serei magra e farei tudo para me manter assim. Estará tudo bem em algum tempo. Estaremos do mesmo lado”. Já entendi que, no meio social em que vivo, é o único jeito de não sofrer significativas sanções de exclusão.

Eu: Mas, vou insistir. Se é um processo tão violento para você, por que emagrecer?
Ela:
É verdade que dieta é uma violência com relação a tudo o que eu acredito. Talvez soe até bobo e infantil reclamar da escolha de emagrecer. É provável até que não faça sentido e que o sentido aparente termine sendo o amoroso-sexual. Sem dúvida, este ganho está presente. Mas há outros. E não é que eu não consiga viver sem estes outros ganhos. Consigo, tanto que vivi, e bem, até aqui. A questão é que estou exausta do esforço que é preciso para isso. Eu não quero ouvir dicas sobre a importância de emagrecer, correr, fazer dieta, a cada telefonema, a cada encontro, a cada email. Diante do meu pedido expresso para que isso não ocorra, não quero ver o melhor amigo passar os meses se segurando, com grande esforço, para não terminar cutucando o assunto de forma impiedosa. Não quero ouvir alguém que pesa mais de 120 quilos gritar que “não há ninguém no mundo que seja feliz sendo gordo!”, me acusando de mentir para mim mesma, quando afirmo que magreza não é exatamente um valor próprio. Não quero ser ignorada na boate porque estou gorda, nem ouvir que estou solteira porque estou gorda, nem perceber os colegas fiscalizando o tamanho do meu prato, nem ver condenação estampada nos olhares que me rodeiam. Este massacre pelo emagrecimento me encheu tanto que prefiro virar uma “paty-tamanho-40”, com um sorriso no rosto sujo por uma folha de rúcula e por um tanto de covardia. Eu realmente estou cansada de, tendo de lidar com tantas coisas difíceis no cotidiano, ainda aguentar os olhares que me dizem o quão imperdoável é estar acima do peso. Veja bem: Não é que seria impossível aguentá-los. Mas é preciso esforço demais... E a vida já anda com desafios significativos. Declino da batalha e entrego os pontos.
Eu: Você me disse que emagrecer é uma espécie de “se perder e se prostituir”. Por quê?
Ela:
Como eu disse, emagrecer foi uma escolha para atender algo que não é fruto do meu próprio desejo. Eu, que me considero tão centrada, tornei-me refém de valores que jamais serão meus, não importa o quanto os siga, por fraqueza ou por covardia. Especificamente sobre a sensação de estar me “prostituindo”, é como se o pagamento pelo esforço em emagrecer se desse em olhares de admiração e de tesão. Às vezes parece um preço alto e absurdo demais para este estranho sexo social. Quando penso que estou usando uma parcela da minha vida para lidar com isso e, no mesmo instante, no mesmo país, há alguém faminto, me sinto uma verdadeira aberração. Tenho receio de terminar esse caminho meio perdida, sem saber direito aquilo em que acredito, nem muito bem o que desejo. Tenho receio de uma nostalgia saudosa do gozo assumido e inteiro, muito mais suave, a que estava acostumada. Porque podia até não ser perfeito, mas eram escolhas inteiras. Sempre achei que estar íntegro no erro é melhor do que alienada em eventuais acertos exógenos. Por outro lado, atendendo a essa exigência social, a vida no meio em que me relaciono pode se tornar mais fácil. Estar acima do peso dificulta bastante os dias numa terra de mulheres deslumbrantes, bem cuidadas e magras. E há um momento da vida em que você descobre que, se já superou tempos difíceis, tem direito à sua cota mínima de covardia e futilidade nessa existência. Estou exercendo minha cota. Covarde demais para me manter quem eu era, me rendi ao mundo e estou fazendo sacrifícios para emagrecer. Não falo isso como uma grande vítima. Mas como uma mulher adulta, como um sujeito de escolhas conscientes e incoerentes.

Eu: É uma escolha sua ou do mundo?
Ela:
A escolha, eu acho, é minha. Porque é lógico que eu poderia continuar gorda. Dentre as mulheres gordas que conheço, talvez eu fosse daquelas que realmente sustentaria, razoavelmente feliz, ser quem é. Quer saber a razão de eu não fazer isso? É lógico que quero, e muito, como todo ser humano, ser aceita e amada. Mas, mais do que isso e principalmente: eu quero uma vida mais fácil. Simples e fútil assim. Estou cansada de batalhar por valores que as pessoas, inclusive as muito queridas, sequer entendem. Juntar-me ao todo dá uma sensação de alívio coletivo e este alívio faz com que me deixem em paz, que é exatamente o que eu desejo e preciso agora. Então eu tomo só um chope pequeno, num dia de calor insuportável, em que não haveria nada demais tomar os três habituais. E volto caminhando para casa para queimar as calorias. No dia seguinte, não como duas fatias de pão integral light, mas só uma. Por fim, confesso o pecado para a nutricionista, que me absolve, com um ato de contrição que exclui queijo amarelo por dois meses. Saí mais cedo do bar e perdi as últimas gargalhadas para não correr o risco de tomar mais um chope. Fiquei com fome durante toda a manhã e sonho, há dias, com requeijão derretido no micro-ondas. Mas tudo bem.

(Eliane Brum escreve às segundas-feiras.)
ebrum@edglobo.com.br
Jornalista, escritora e documentarista. Ganhou mais de 40 prêmios nacionais e internacionais de reportagem. É autora de Coluna Prestes – O Avesso da Lenda (Artes e Ofícios), A Vida Que Ninguém Vê (Arquipélago Editorial, Prêmio Jabuti 2007) e O Olho da Rua (Globo).

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sábado, 25 de agosto de 2012

Reunião de Família


"Família é prato difícil de preparar. São muitos ingredientes. Reunir todos é um problema...Não é para qualquer um. Os truques, os segredos, o imprevisível. Às vezes, dá até vontade de desistir...Mas a vida... sempre arruma um jeito de nos entusiasmar e abrir o apetite. O tempo põe a mesa, determina o número de cadeiras e os lugares. Súbito, feito milagre, a família está servida. Fulana sai a mais inteligente de todas. Beltrano veio no ponto, é o mais brincalhão e comunicativo, unanimidade. Sicrano, quem diria? Solou, endureceu, murchou antes do tempo. Este é o mais gordo, generoso, farto, abundante. Aquele, o que surpreendeu e foi morar longe. Ela, a mais apaixonada. A outra, a mais consistente...Já estão aí? Todos? Ótimo. Agora, ponha o avental, pegue a tábua, a faca mais afiada e tome alguns cuidados. Logo, logo, você também estará cheirando a alho e cebola. Não se envergonhe de chorar. Família é prato que emociona. E a gente chora mesmo. De alegria, de raiva ou de tristeza.

O pior é que ainda tem gente que acredita na receita da família perfeita. Bobagem. Tudo ilusão. Não existe Família à Oswaldo Aranha; Família à Rossini, Família à Belle Manière; Família ao Molho Pardo (em que o sangue é fundamental para o preparo da iguaria). Família é afinidade, é à Moda da Casa. E cada casa gosta de preparar a família a seu jeito. Há famílias doces. Outras, meio amargas. Outras apimentadíssimas. Há também as que não têm gosto de nada, seria assim um tipo de Família Dieta, que você suporta só para manter a linha. Seja como for, família é prato que deve ser servido sempre quente, quentíssimo. Uma família fria é insuportável, impossível de se engolir.

Enfim, receita de família não se copia, se inventa. A gente vai aprendendo aos poucos, improvisando e transmitindo o que sabe no dia a dia. A gente cata um registro ali, de alguém que sabe e conta, e outro aqui, que ficou no pedaço de papel. Muita coisa se perde na lembrança. Principalmente na cabeça de um velho já meio caduco como eu. O que este veterano cozinheiro pode dizer é que, por mais sem graça, por pior que seja o paladar, família é prato que você tem que experimentar e comer. Se puder saborear, saboreie. Não ligue para etiquetas. Passe o pão naquele molhinho que ficou na porcelana, na louça, no alumínio ou no barro.

Aproveite ao máximo. Família é prato que, quando se acaba, nunca mais se repete."


Trechos do livro "O Arroz de Palma" de Francisco Azevedo

copiei de uma citação no CaraLivro de uma prima

domingo, 19 de agosto de 2012

sobre esse sentimento tão universal..., por Fernando Pessoa

Todas as cartas de amor são
Ridículas.

Não seriam cartas de amor se não fossem
Ridículas.

Também escrevi em meu tempo cartas de amor,
Como as outras,
Ridículas.

As cartas de amor, se há amor,
Têm de ser
Ridículas.

Mas, afinal,
Só as criaturas que nunca escreveram
Cartas de amor
É que são
Ridículas.

Quem me dera no tempo em que escrevia
Sem dar por isso
Cartas de amor
Ridículas.

A verdade é que hoje
As minhas memórias
Dessas cartas de amor
É que são
Ridículas.

(Todas as palavras esdrúxulas, como os sentimentos esdrúxulos, são naturalmente ...
Ridículas.)


Álvaro de Campos, 21-10-1935

sexta-feira, 10 de agosto de 2012

coisas que leio por aí...

estou lendo um texto de filosofia oriental e achei interessante essa parte:

8 – Escolha. A idéia de que somos sempre livres para fazer uma escolha não está de acordo com a experiência. Não escolhemos nascer, parar de envelhecer, de ficar doentes ou de sofrer dor. Não podemos escolher viver para sempre. Não podemos escolher ser felizes em cada momento do dia. Não podemos escolher os resultados dos eventos que realizamos em nossas vidas. Poderíamos pensar que fazemos escolhas livres e independentes somente para constatar mais tarde que a suposta livre escolha que fizemos acabou se tornando um pesadelo. Nossas supostas escolhas são limitadas. Fazemos escolhas sem conhecer as incontáveis condições que influenciam tais escolhas, ou do passado, presente, ou que poderiam surgir no futuro. Somos herdeiros de nosso karma e amarrados a nosso karma. Isso é uma escolha? É aconselhável usar a linguagem de “escolha”? É a noção da escolha do consumidor deixando-nos iludidos e aprisionados como fregueses? O Buda enfatizou mais a intenção afetando corpo, fala e mente. Na clareza, naturalmente cultivamos ética, samadhi [N.T. “êxtase” - o autor o define como “poder de concentração”] e sabedoria. É uma prioridade natural. A Sabedoria diz que neste caso não se sente haver qualquer escolha. É simplesmente algo conduzente a um modo de vida liberado. Num sentido profundo, realmente não há uma escolha.

achei instigante pensar sobre esse ponto de vista, foi novidade... assim como esse outro trecho aqui:

10 – Iluminação. A palavra “iluminação” não aparece em lugar algum dos textos budistas. Iluminação é um conceito Ocidental relacionado à era moderna no Ocidente, onde a ciência e a razão gradualmente substituíram o Deus que distribuía punições e recompensas pelas crenças e conduta humana. A palavra bodhi significa “despertar”. Ela vem da raiz budh - “acordar”. Soa arrogante dizer “eu estou iluminado”. Isso soa como crença em um “Eu” que diz “eu estou iluminado”, já que implica em um Eu chegando à Luz e que podemos apreciar aqueles que despertaram. Em Sete Fatores da “Iluminação” a palavra Páli é bojjhanga - bodhi, despertar e anga, aspectos de ou membros de. Uma década atrás eu escrevi um livro chamado Light on Enlightenment [Luz sobre a Iluminação]. Anos depois, um especialista Páli me fez a distinção entre despertar e iluminação.


Vivendo e aprendendo!

quinta-feira, 2 de agosto de 2012

O Ocasional e o Essencial

Uma das razões que torna o escritor Ian McEwan um dos grandes nomes da literatura contemporânea é que ele escreve tão bem que consegue nos capturar para dentro de seus livros. Você não lê: você vive aquilo que está escrito. No seu mais recente lançamento, Na Praia, os personagens Edward e Florence, recém casados, travam uma conversa que definirá o futuro de cada um. É um diálogo difícil, delicado, forte, emocionante, verdadeiro, triste e nenhum destes adjetivos vêm em nosso socorro para ajudar a compreender a cena, não é preciso: a gente está ali com eles, ouvindo tudo, sofrendo junto. Enquanto eles conversavam, escutei não apenas suas vozes, mas o barulho das ondas, a interferência da brisa e a lenta batida do coração de cada um. Quase paramos todos de respirar - o casal e eu.

A questão dolorosa do livro é uma pergunta para a qual dificilmente encontramos resposta: a pessoa que você amou e perdeu no passado era essencial na sua vida?

Uns tiveram muitos amores entre os 16 e os 80 anos, outros tiveram poucos, mas todos nós possuímos um passado, não há quem tenha vivido com o coração desocupado. Os dias que correm, hoje, indicam que nossa vida amorosa irá se intensificar ainda mais, uma vez que as possibilidades de encontro se multiplicam (a Internet fazendo sua parte), os preconceitos diminuem (aumentando a oferta de "composições") e a necessidade de desejar e ser desejado tem se imposto à necessidade de casar e ter filhos. Na prática, estas mudanças já vêm acontecendo. Há diversas formas de se relacionar, e se o número de adeptos de formas menos tradicionais ainda não é volumoso, o respeito por todas elas está, ao menos, quase sedimentado.

Este entre-e-sai de homens e mulheres na vida uns dos outros dinamiza as relações, incrementa biografias, dá uma sensação de estarmos aproveitando bem o nosso tempo. E o amor não está excluído da festa, pode marcar presença forte em quaisquer dos novos padrões de comportamento. Mas este barulho todo não oculta nosso questionamento mais secreto: haverá alguém que, entre todos os que cruzaram nosso caminho, poderia ter nos transformado, nos acrescido, nos desviado desta eterna experimentação e justificado nossa existência de uma forma mais intensa? Terá esta pessoa cruzado por nós e a perdemos por causa de uma frase mal colocada, por uma palavra dita com agressividade, por uma precipitação, por um medo ou um equívoco?

Não é uma resposta que chegue cedo para todos. Sorte de quem já a tem. Em Na Praia, Ian McEwan não oferece um final infeliz a seus personagens, mas não os priva de uma dúvida comum a todos: que destino teríamos se um amor vivido errado tivesse sido vivido certo. Como assumir este amor sem sofrer as influências da época, da sociedade e da nossa própria imaturidade. Como valorizar o que se tem no momento em que se tem, e não depois. Como livrar-se do fantasma do "se eu tivesse dito, se eu tivesse feito, se eu...".

O maravilhoso mundo das relações amorosas progride, se reinventa, se liberta das convenções, se movimenta para um lado e para o outro, mas seguimos mantendo a íntima esperança de que, entre todos os "muitos" que nos fizeram felizes, possamos reconhecer aquele "um" que calaria todas as nossas perguntas.
Martha Medeiros