sábado, 25 de setembro de 2010

A melancolia epidêmica


Orlando Coser


O século XX assistiu à emergência de uma nova cultura no enfrentamento dos males da alma. Em parte ela se deve à criação dos medicamentos psicotrópicos, cujo primeiro representante entrou no mercado em 1952. Estava aberta a temporada dos psicofármacos, que modificariam completamente o tratamento dos distúrbios da alma. Aparecia uma nova classificação química, a dos antipsicóticos, usados inicialmente no tratamento da esquizofrenia ou estados de intensa agitação psicomotora.
Este primeiro medicamento e seus sucessores teriam, desde então, revolucionado a psiquiatria.

Esta, entretanto, é apenas a narrativa sancionada pela indústria e pelo discurso acadêmico dominante, e não a verdade última deste campo. Nesse novo universo da psicofarmacologia, a indústria se esmerou na produção de metáforas — os discursos científicos e mercadológicos criados especificamente para falar dos efeitos dos novos medicamentos e suas indicações.

Uma vez que os efeitos obtidos com os novos medicamentos inauguravam novidades para as quais não existiam nomes, era preciso inventar formas de designá-los. Da junção entre substância e metáfora, nascem os numerosos estabilizadores, tranquilizantes, antidepressivos, neuromoduladores, antagonistas da serotonina… A l é m d e sintetizar novas substâncias, testá-las, e p r o d u z i r medicament o s , t ê m s e que produzir metáforas conceituais, argumentos e hipóteses científicas para dar aval às novas drogas.

Assim, o primeiro antipsicótico foi chamado de “estabilizador neurovegetativo”; o primeiro “antidepressivo”, de “energizante psíquico”. Os aparentes exageros ficam quase camuflados no discurso intensivo dos departamentos de marketing da indústria. Um bom exemplo é a “descoberta”, recente, de uma doença que se convencionou chamar de fobia social.

“Imagine ser alérgico a gente”, provoca a campanha de divulgação desta inovação diagnóstica, feita sob medida para um medicamento.

Suas vendas saltaram de 2,1 para 3,31 bilhões de dólares, em um ano. O departamento de marketing do laboratório não se preocupou em camuflar intenções, na apresentação do novo produto: “Todo comerciante tem o sonho de encontrar um mercado não identificado para desenvolvê-lo. Isso é o que nós fomos capazes de fazer com o transtorno de ansiedade social”. A luminosidade desta afirmação revela o tumultuado espectro do campo da saúde mental, agora totalmente sob o domínio da indústria ou, melhor dizendo, do capital industrial que lhe pede remuneração imediata.

O principal efeito desta estratégia mercadológica é o menosprezo à clínica médica e psicológica.

Parte do saber, da ciência, da tradição médica, é substituída pelo convencimento através de ampla ação de marketing, destinada não só a profissionais de saúde como, a partir de comunicação direta, a leigos.

A indústria assume a tarefa de instruir médicos e pacientes no desempenho do papel que lhe interessa. Para bem vender os produtos que fabrica, o marketing fomenta a sintomatização do viver. Os pacientes são instruídos a produzir sintomas e os médicos, a prescrever. Somos instruídos sobre determinados códigos comportamentais, e com eles aprendemos a diagnosticar, traduzir e entender certas queixas. Tudo embalado com argumentos científicos.

Estas instruções criam formas de percepção, julgamento e ação sobre determinadas questões, criam-se hábitos de consumo e comportamento.

Dos anúncios de medicamentos dos anos 1950 prometendo “reduzir os primitivos ímpetos de luta e fuga”, ou os sugeridos para amenizar nas crianças seu “ânimo contestador”, vemos nos últimos anos um crescimento exponencial desse marketing, em que as pessoas não ficam mais apenas tristes, desanimadas, fatigadas, angustiadas, aflitas. Agora elas são classificadas com diagnósticos graves de depressão, pânico, TOC. E o número de pessoas atendidas como depressivas não para de crescer. Os psicofármacos alteram os conceitos que fazemos de saúde, doença, sofrimento, bem estar, e a maneira como representamos nossos estados afetivos.

Dificuldades cotidianas viram sintomas patológicos.

A depressão, doença de importância indiscutível, transformouse numa febre que atinge quase 25% da população, quando, em 1960, era diagnosticada para 1% dos doentes. Mais uma vez, essa expansão não é determinada por um apuro no diagnóstico, e sim pela prescrição generalizada de medicamentos.

Os portadores reais dessa doença se misturam aos milhões que são de alguma forma vítimas do marketing farmacêutico.

Um dos argumentos já absorvidos por grande parte de profissionais e leigos afirma que a depressão seria o resultado de um desequilíbrio neuroquímico.

Embora questionável, o dogma é muito usado porque funciona como um modelo conceitual que instrumentaliza a pesquisa e o discurso científico da psiquiatria. Atualmente, tudo se passa como se um deprimido fosse quem padecesse de falta de serotonina. E, consequentemente, carecesse de um medicamento destinado a suprila. Todos os antidepressivos anunciam corrigir o desequilíbrio da balança neuro-hormonal, resultando que a venda destes medicamentos alcançasse cifras bilionárias.

Para ampliar a expansão do uso dos psicofármacos, o século XXI assiste a uma nova metáfora, a categoria “transtornos comportamentais”, genérica o suficiente para não ter limites, porém específica o bastante para indicar um problema a ser resolvido. Ideal para pediatras e clínicos gerais, induzidos a esta prescrição não padronizada (off-label). Idosos e crianças são o segmento da vez. Pesquisas americanas e inglesas alertam, entretanto, que se prescrevem antipsicóticos para crianças sem qualquer receio de efeitos colaterais, mesmo que tardios. Pesquisa documentam, entre 1995 e 2006, o crescimento do número de consultas médicas para clientes entre 2 e 18 anos, em que um psicotrópico da classe dos antipsicóticos fosse indicado, detectando um salto nestas prescrições de 8,6 por 1000 consultas em 1995 para 39,4 por mil em 2002. Com o agravante de 67% das indicações terem sido feitas por médicos não especializados em psiquiatria ou neurologia.


ORLANDO COSER é psiquiatra e psicanalista, doutor pela PUC-SP, e autor de “As metáforas farmacoquímicas com que vivemos” (Garamond)






PROSA&VERSO - 04/09/2010

Altos e baixos  

Numa época de oscilações entre a euforia e a depressão, que sentido ainda pode ser tirado das ideias de tristeza e felicidade?