segunda-feira, 27 de setembro de 2010

A ética da alegria e o fim da tirania

Regina Schöpke

Quando o filósofo Clément Rosset afirma, a respeito de Nietzsche, que “a alegria é a força maior”, ele deseja mostrar que a alegria não é um sentimento dentre outros, mas a força motriz que nos impele à vida, uma espécie de grande “sim” à existência em todas as suas facetas. Afinal, este sentimento envolve todos os nossos sentidos e nos fortalece de tal maneira que, uma vez alegres, nada mais parece pesar em nós.

É que a alegria, quando vivida em profundidade, não deixa espaço para mais nada — razão pela qual Leibniz a definia como um sentimento totalizante que, estando presente, domina todos os demais. Totalizante ou apenas dominante, a alegria, para Nietzsche, é a força que nos coloca em movimento, é aquilo que nos faz agir, é o que nos faz querer viver.

É claro que nem todos entendem a alegria deste modo. Para muitos, ela é apenas um ímpeto passageiro, uma sensação fugaz de contentamento e júbilo, algo que apenas contrasta com a dor, geralmente considerada mais permanente e profunda.

Porém, para filósofos como Nietzsche e, sobretudo, Espinosa, ela é um sentimento vital, afirmativo, que se confunde com a própria potência de existir.

Neste caso, ela pode ser definida como uma disposição favorável com relação à vida. Eis porque o homem alegre é sempre alegre, mesmo quando está triste (ao contrário do homem angustiado, que sempre é angustiado mesmo quando tem motivos para estar alegre).

Em poucas palavras, é preciso que se entenda que sem alegrias o corpo vai adoecendo e a paralisia das ações torna-se inexorável.

É a ocasião certa para a angústia se instalar e afunilar nossa percepção da vida. Porque é isto exatamente a angústia: uma sensação ou sentimento de vazio, de incompletude, de insignificância, uma espécie de afunilamento, de perda de perspectiva, de indisposição com a vida. É quando o niilismo se instala no âmago do ser e a própria vida é vista como nada.

Espinosa usa o conceito de “conatus” para definir esta força de existir inerente a cada ser (que aumenta e diminui ao longo da existência em função dos encontros alegres ou tristes que fazemos). É por isso que Nietzsche afirma que os pessimistas e niilistas, ao julgarem a vida má e pesada, nada mais fazem do que revelar sua própria impotência e fraqueza diante dela.

Sem dúvida, é de grande valor para estas reflexões o conhecimento genealógico do conceito de alegria (que ora foi pensado como um movimento da alma, ora como paixão, afecção, pulsão, emoção fundamental ou simples prazer da mente). E, neste caso, o livro “A história da alegria — Da Bíblia ao Romantismo tardio”, de Adam Potkay (Editora Globo), é uma boa fonte de informação. Potkay, que deixa claro que sua intenção não é buscar uma definição para a alegria em si mesma, mas, sim, mostrar o aspecto cultural de um sentimento que é também um conceito e uma palavra, parte do pressuposto de que os cristãos protestantes, ao contrário dos católicos, teriam posto a alegria no centro de suas preocupações (provavelmente por se negarem a levar uma existência terrena só de privações e sofrimentos).

Potkay, no entanto, não se priva de dar sua própria interpretação da alegria e se alia àqueles que a vêem como um sentimento fugaz, que emerge como uma pausa na dor da existência.

Trata-se, para ele, de uma sensação passageira que inebria os sentidos e a mente.

Definição um tanto schopenhaueriana, sem dúvida: afinal, a alegria é vista mais como exceção do que regra numa vida pensada como dor e sofrimento.

Mas isto não é tudo. Potkay define a alegria como um “deleite da mente”, o que significa dizer que ele tende a racionalizá-la e, assim, sentir-se alegre é, sobretudo, saber-se alegre. De fato a leitura do livro nos mostra como o conceito vai assumindo variadas formas e nuances (na poesia, na literatura, na filosofia ou na religião).

É aqui que saímos do universo histórico de Potkay e mergulhamos de novo nas reflexões filosóficas de Espinosa e Nietzsche.

Afinal, é preciso compreender a alegria do ponto de vista de sua ontologia, de sua realidade, é preciso entendê-la como uma forma de resistência, de enfrentamento do mundo e de suas falsas promessas de felicidade.

É aí que a leitura da “Ética” de Espinosa torna-se essencial para nos fazer entender como a busca dos bons encontros é fundamental para nos tornar mais fortes e livres. Na verdade, a lógica da vida (ou da potência) é simples: a alegria aumenta nosso poder de existir, aumenta o nosso “conatus”, enquanto a tristeza diminui nossas forças, nosso poder de ação.

Não existe uma regra para o que nos fortalece: pode ser uma bela música, um grande amor, uma amizade profunda, a filosofia, um afeto animal e até mesmo os prazeres mais simples do corpo, que foi sempre tão violentamente esmagado por uma moral hipócrita que condena as alegrias físicas em nome das alegrias “metafísicas”. Seja como for, é preciso buscar o que nos potencializa, porque é a fraqueza que alimenta os tiranos, diz Espinosa.

Eis que estamos diante de uma questão política e existencial das mais profundas: a tirania domina pela força, e também pelas ideias, os que estão fracos e impossibilitados de lutar.

As religiões, por exemplo, dominam os homens infundindolhes o medo da morte e dos castigos eternos.

Em suma, falar em uma ética da alegria é falar em uma ética da potência, uma ética que busca produzir homens mais fortes e plenos para a vida, ou seja, homens verdadeiramente livres.


REGINA SCHÖPKE é filósofa, historiadora e autora dos livros “Por uma filosofia da diferença” e “Matéria em movimento”. Atualmente, dedicase ao estudo da alegria, definida, antes de tudo, como potência de vida e de enfrentamento do mundo
 
 

PROSA&VERSO - 04/09/2010

Altos e baixos  

Numa época de oscilações entre a euforia e a depressão, que sentido ainda pode ser tirado das ideias de tristeza e felicidade?