O
namoro do Chico Buarque com a cantora ruiva Thais Gulin rendeu para nós
este primor de blues ESSA PEQUENA, cuja letra vai aí abaixo. Mas
rendeu também a interessante crônica UM TEMPO SEM NOME da escritora
Rosiska Darcy de Oliveira sobre “o novo conceito de envelhecer”.
Essa Pequena
Meu tempo é curto, o tempo dela sobra
Meu cabelo é cinza, o dela é cor de abóbora Temo que não dure muito a nossa novela, mas Eu sou tão feliz com ela
Meu dia voa e ela não acorda
Vou até a esquina, ela quer ir para a Flórida Acho que nem sei direito o que é que ela fala, mas Não canso de contemplá-la
Feito avarento, conto os meus minutos
Cada segundo que se esvai Cuidando dela, que anda noutro mundo Ela que esbanja suas horas ao vento, ai
Às vezes ela pinta a boca e sai
Fique à vontade, eu digo, take your time Sinto que ainda vou penar com essa pequena, mas O blues já valeu a pena
UM TEMPO SEM NOME
Com
seu cabelo cinza, rugas novas e os mesmos olhos verdes, cantando
madrigais para a moça do cabelo cor de abóbora, Chico Buarque de Holanda
vai bater de frente com as patrulhas do senso comum. Elas torcem o
nariz para mais essa audácia do trovador. O casal cinza e cor de abóbora
segue seu caminho e tomara que ele continue cantando “eu sou tão feliz
com ela” sem encontrar resposta ao “que será que dá dentro da gente que
não devia”.
Afinal,
é o olhar estrangeiro que nos faz estrangeiros a nós mesmos e cria os
interditos que balizam o que supostamente é ou deixa de ser adequado a
uma faixa etária. O olhar alheio é mais cruel que a decadência das
formas. É ele que mina a autoimagem, que nos constitui como velhos,
desconhece e, de certa forma, proíbe a verdade de um corpo sujeito à
impiedade dos anos sem que envelheça o alumbramento diante da vida .
Proust,
que de gente entendia como ninguém, descreve o envelhecer como o mais
abstrato dos sentimentos humanos. O príncipe Fabrizio Salinas, o
Leopardo criado por Tommasi di Lampedusa, não ouvia o barulho dos grãos
de areia que escorrem na ampulheta. Não fora o entorno e seus espelhos,
netos que nascem, amigos que morrem, não fosse o tempo “um senhor tão
bonito quanto a cara do meu filho“, segundo Caetano, quem, por si mesmo,
se perceberia envelhecer? Morreríamos nos acreditando jovens como
sempre fomos.
A
vida sobrepõe uma série de experiências que não se anulam, ao
contrário, se mesclam e compõem uma identidade. O idoso não anula dentro
de si a criança e o adolescente, todos reais e atuais, fantasmas
saudosos de um corpo que os acolhia, hoje inquilinos de uma pele em que
não se reconhecem. E, se é verdade que o envelhecer é um fato e uma
foto, é também verdade que quem não se reconhece na foto, se reconhece
na memória e no frescor das emoções que persistem. É assim que,
vulcânica, a adolescência pode brotar em um homem ou uma mulher de
meia-idade, fazendo projetos que mal cabem em uma vida inteira.
Essa
doce liberdade de se reinventar a cada dia poderia prescindir do
esforço patético de camuflar com cirurgias e botoxes — obras na casa
demolida — a inexorável escultura do tempo. O medo pânico de envelhecer,
que fez da cirurgia estética um próspero campo da medicina e de uma
vendedora de cosméticos a mulher mais rica do mundo, se explica
justamente pela depreciação cultural e social que o avançar na idade provoca.
Ninguém
quer parecer idoso, já que ser idoso está associado a uma sequência de
perdas que começam com a da beleza e a da saúde. Verdadeira até então,
essa depreciação vai sendo desmentida por uma saudável evolução das
mentalidades: a velhice não é mais o que era antes. Nem é mais quando
era antes. Os dois ritos de passagem que a anunciavam, o fim do trabalho e da libido, estão, ambos, perdendo autoridade. Quem
se aposenta continua a viver em um mundo irreconhecível que propõe
novos interesses e atividades. A curiosidade se aguça na medida em que
se é desafiado por bem mais que o tradicional choque de gerações com
seus conflitos e desentendimentos. Uma verdadeira mudança de era nos leva de roldão, oferecendo-nos ao mesmo tempo o privilégio e o susto de dela participar.
A
libido, seja por uma maior liberalização dos costumes, seja por
progressos da medicina, reclama seus direitos na terceira idade com uma
naturalidade que em outros tempos já foi chamada de despudor. Esmaece a
fronteira entre as fases da vida. É o conceito de velhice que envelhece.
Envelhecer como sinônimo de decadência deixou de ser uma profecia que
se autorrealiza. Sem, no entanto, impedir a lucidez sobre o desfecho.
”Meu
tempo é curto e o tempo dela sobra”, lamenta-se o trovador, que não
ignora a traição que nosso corpo nos reserva. Nosso melhor amigo, que
conhecemos melhor que nossa própria alma, companheiro dos maiores
prazeres, um dia nos trairá, adverte o imperador Adriano em suas
memórias escritas por Marguerite Yourcenar.
Todos
os corpos são traidores. Essa traição, incontornável, que não é segredo
para ninguém, não justifica transformar nossos dias em sala de espera,
espectadores conformados e passivos da degradação das células e dos
projetos de futuro, aguardando o dia da traição.Chico,
à beira dos setenta anos, criando com brilho, ora literatura , ora
música, cantando um novo amor, é a quintessência desse fenômeno,
um tempo da vida que não se parece em nada com o que um dia se chamou
de velhice. Esse tempo ainda não encontrou seu nome. Por enquanto
podemos chamá-lo apenas de vida.
ROSISKA DARCY DE OLIVEIRA é escritora.
O Globo, 21/01/12
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