A China é agora a segunda economia do mundo, superando o Japão. Nesse inacreditável laboratório da modernidade, há muitos perigos à espreita, quer eles venham da ecologia, do sistema político ou do próprio crescimento vertiginoso da economia. Mas a China é hoje um lugar onde acontecem coisas surpreendentes. Como, por exemplo, a ressurreição de Confúcio.
Em artigo publicado no “New Perspectives Quarterly”, Daniel Bell, professor de filosofia política na Universidade Tsinghua, de Beijing, lembra que, há apenas 40 anos, seria suicídio elogiar Confúcio na China maoísta. Ele era o inimigo, a China feudal a ser destruída. Hoje, o Partido Comunista Chinês dá seu aval a um filme sobre Confúcio, em que ele aparece como professor de valores humanos.
Isso não acontece por acaso. Como lembra o professor Bell, essa floração neoconfuciana poderia dar ao governo um novo tipo de legitimidade, partindo-se do princípio de que o comunismo, na China, já não é fonte de inspiração para ninguém. E Confúcio está na raiz da cultura chinesa.
Esse retorno vem-se processando a uma velocidade crescente. Temas confucianos apareceram nas Olimpíadas de 2008, com citações dos “Analectos” no espetáculo de abertura (que, aliás, lembrava a China antiga na sua extraordinária sofisticação). O Instituto Confúcio, patrocinado pelo Governo, manda agora essa mensagem para o exterior, como se fosse uma Alliance Française.
Os velhos quadros do Partido, claro, reagem. Confúcio foi anátema por tantos anos! Mas o tempo está contra eles. Sinal indiscutível de confucionismo: o Partido começa a trabalhar com base na meritocracia. Cada vez mais, os convites recaem sobre pessoas bem educadas (algo de parecido no Brasil?). E não é só o Governo que age assim: é a própria sociedade, acreditando que um treinamento em humanidades melhora o desempenho individual em qualquer plano.
Confúcio, claro, não se pautava por códigos clássicos da democracia ocidental. A sua meritocracia estabelecia a igualdade de oportunidades: dê a todos as mesmas oportunidades. A partir daí, que se imponham os melhores. Assim se fizeram, durante séculos, os concursos que, na China antiga, apontavam os funcionários que ocupariam cargos importantes.
Os neoconfucianos da China de agora estão propondo que se selecionem deputados por mecanismos como concursos bem feitos e abrangentes. Será utópico? Mas Bryan Caplan escreveu um estudo — “O mito do eleitor racional” — que tem como subtítulo “Por que as democracias escolhem maus políticos”. Os nossos critérios são bastante aleatórios, com espaço generoso para a demagogia ou a compra de votos.
Vindo ou não essa reforma política, a China só tem a ganhar com o retorno a Confúcio. Isso daria à febre de conhecimento que ataca os chineses de hoje uma dimensão que é a da própria história do país.
A quase obsessão do conhecimento é uma das marcas registradas do pensamento de Confúcio. Nascido no sexto século a.C., ele foi um professor nato, e tinha a preocupação de estender a todos os benefícios da educação, numa época em que isso era absoluta novidade. Assim, desde cedo, foi reunindo à sua volta grupos de jovens não só fascinados com o mestre, mas desejosos de aproveitar seus conselhos e ensinamentos para subir na vida.
Aos 50 anos, Confúcio foi feito magistrado, e tornou-se ministro da Justiça do seu pequeno principado. Mas, em pouco tempo (como aconteceu com Platão), vê que não consegue mudar a cabeça dos seus príncipes, e resolve viajar para expandir a sua missão pedagógica. Conta-se que voltou para casa aos 68 anos, e teria tido tempo de preparar edições de suas obras — os clássicos confucianos que, durante dois mil anos, moldaram a cultura chinesa.
O humanismo confuciano foi a mais bem-sucedida aventura educativa da História, combinando senso prático com uma abertura para os valores mais altos. Na base do sistema, o conceito de humanidade (jen), a que se somava a piedade filial.
A reverência aos pais (o quarto mandamento da doutrina cristã) corresponde à educação do coração. Ao reconhecer que devemos aos pais o dom da vida, estamos adotando uma saudável e salvadora humildade: você sai de si mesmo, enfraquece o egoísmo, ao enxergar, fora de você, coisas profundas e dignas de respeito. Não estranha que, odiando o próprio pai, Mao Tse-tung odiasse Confúcio.
O ideal do homem confuciano foi assim descrito: afável, mas digno; austero sem ser áspero; polido, mas completamente à vontade. Ficamos lembrando de um Dr Johnson, na Inglaterra do século XVIII. Mas era um ensino que tinha os pés no chão. Perguntaram a Confúcio como fazer para servir os entes espirituais. Resposta: se não somos capazes de servir ao ser humano, como podemos servir aos entes espirituais? (não está muito longe do Evangelho…)
Foi, também, um profundo pensador político. Perguntado sobre o que seria um bom governo, ele respondeu: “Alimentação básica, armamento básico e a confiança do povo.” E se tivéssemos de abandonar uma dessas coisas? Resposta: “Eu abandonaria os armamentos.” Forçado a escolher entre os dois restantes, o que você faria? Resposta: “Eu faria menos questão dos alimentos. Desde tempos imemoriais, nenhum Estado subsiste sem a confiança do povo.” É um caso a pensar.
LUIZ PAULO HORTA é jornalista
O Globo, 22/08/10