VEJA
Edição 1999
14 de março de 2007
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Ponto de vista: Lya Luft
Mulheres & Mulheres
"Existem as mulheres maltratadas, aviltadas,
submetidas. Mas a maioria de nós pode lutar
com determinação por uma vida mais plena"
O assunto já está enjoando, embora a medicina tenha encontrado recentemente novos motivos para as diferenças entre masculino e feminino, ou, como dizem minhas netas gêmeas de 4 anos e seu primo da mesma idade, entre meninos e meninas (para eles o pai, os tios e o avô emprestado são "meninos", enquanto a mãe, as avós e as tias estão na categoria "meninas").
Muito de verdadeiro ou de fantasioso se tem dito e escrito sobre a questão da mulher. Fora das culturas em que mulher vale menos do que um animal de tração, uma das lorotas é que ela foi sempre esmagada pelo troglodita brutal, traída pelo sem-vergonha, desprezada pela sociedade cruel. Nem todas. Nem sempre. Basta ler um pouco de história – não a dos livros escolares, mas alguma coisa mais bem documentada – para ver que em todas as épocas houve mulheres realizadas, influentes política e culturalmente. Talvez não tenham sido maioria, mas homens interessantes também não são a maioria.
É verdade que mulheres sempre causaram desconforto, ou por sua postura vitimal ou por suspeitas que despertam quando não são bobas. A Igreja queimou milhares como bruxas, porque conheciam ervas medicinais, por serem parteiras, portanto chegadas ao mistério da vida e da morte, outras simplesmente porque de alguma forma não se enquadravam. Acabo de ler uma boa biografia de Joana d'Arc, recheada de documentos comprovando a ignorância, a farsa, a brutalidade com que foi processada e queimada viva pela chamada Mãe Igreja. Tinha menos de 20 anos, a pobre moça que em sua aldeia chamavam de Joaninha. Pouco depois resolveram mudar tudo, e recentemente até a declararam santa. Histórias da Inquisição são de vomitar: homens, crianças, velhos e velhinhas, por qualquer motivo, eram vítimas de tortura, sangue e fogueira. Mas as mulheres, ah, essas criaturas que sangram todo mês e não morrem, com orifícios que prometem prazeres inomináveis, certamente têm parte com o Demo, e foram as vítimas preferidas. Antigamente, da Inquisição; agora ainda, em muitos casos, da fogueira do preconceito (também das próprias mulheres, diga-se de passagem).
Mas é folclore que fomos sempre submissas e sacrificadas: muitas de nossas doces avozinhas dirigiam a família com olho rápido, língua afiada e pulso firme. Mesmo em séculos passados, a mãe eventualmente detinha um poder invejável. O marido não raro a consultava no secreto do quarto sobre decisões importantes, nas propriedades rurais ela administrava a casa da cidade, fiscalizava o estudo dos filhos, negociava casamentos, cuidava do dinheiro, enquanto o marido e senhor corria com seus peões pelas vastidões do campo atrás do gado.
Houve e ainda há as maltratadas, traídas e inferiorizadas. As que não tiveram escolha, submetidas e humilhadas já pela cultura perversa em que nasceram; existem as que se acomodam por interesse, as que se acovardam por serem infantis, e acabam cobrando alto preço aos que com elas convivem. Quanto à traição masculina, muitas mulheres sabem, fingem ignorar, para assim dominarem o trapalhão através da culpa, e ao mesmo tempo serem dispensadas do chatíssimo (para elas...) dever conjugal. "Perdoam" infidelidades maritais, para ter sossego na cama, para não perder o provedor, para manter o status de casada, "para não desmanchar a família" (filhos manipulados como desculpa para coisas atrozes entre os pais).
Não, a mulher não foi sempre ou somente a coitadinha. Muitos homens sofrem com a silenciosa ou eloqüente chantagem emocional da mulher, de quem não conseguem se separar por culpa, sentimento de responsabilidade ou mesmo simples fraqueza.
Mulher vitimal, se generalizado, é um conceito altamente hipócrita. Existem as maltratadas sem saída, as aviltadas sem socorro, as submetidas sem opção. Mas a maioria de nós nem é santa nem é boazinha e, em lugar de acusar e se queixar, pode lutar com determinação por uma vida mais plena. Isso dependerá de cada uma, de sua personalidade, suas marcas de vida, sua condição familiar, sua informação, sua neurose e sua frustração. Nas proximidades do Dia da Mulher, quero dizer que ela dispensa elogios falsos e louvações consoladoras, porque ela não é vítima por essência, porque na nossa cultura pode construir sua vida e seu destino e escrever sua história, embora com limitações, como todos as têm. Talvez pudéssemos começar não nos pensando em primeiro lugar como "mulheres", mas como pessoas, e como pessoas buscar respeito, espaço, trabalho, tranqüilidade, alegria e amor. Masculino e feminino são secundários à essência "ser humano": vêm depois disso, nessa velhíssima e nem sempre bem contada história da guerra dos sexos.