As mulheres estão se tornando maioria nas redes interativas; a vaidade e a necessidade de afirmação da identidade podem explicar o interesse feminino por esse recurso tecnológico |
março de 2011
Isabelle Anchieta
© phil mccarten/reuters/latinstock |
As mulheres gastam mais do que o dobro do tempo dos homens no Facebook:
três horas por dia, enquanto eles gastam uma hora, em média. Entrar na
rede social é a primeira ação diária de muitas delas, antes mesmo de
irem ao banheiro ou escovarem os dentes. Uma atividade cumprida como um
ritual todos os dias – e noites. Em um estudo, 21% admitiram que se
levantam durante a noite para verificar se receberam mensagens.
Dependência? Cerca de 40% delas já se declaram, sim, dependentes da
rede. Elas são a maioria não só no Facebook (onde representam 57% dos
usuários); também têm mais contas do que os homens em 84% dos 19
principais sites de relacionamentos.
Essas são algumas revelações da pesquisa feita pelas empresas Oxygen Media e Lightspeed Research, que analisou os hábitos on-line de 1.605 adultos ao longo de 2010. Mas cabe ainda perguntar: que motivos levam as mulheres a ficar tanto tempo na frente do computador? Vaidade? Necessidade de reconhecimento? Seria esse fenômeno uma nova forma de autoafirmação? Uma maneira de desenvolver sua individualidade aliada ao reconhecimento do outro? Será essa uma nova forma de buscar sociabilização?
Mais do que procurar uma resposta fácil, cabe, antes, compreender por que a auto-representação é mais importante para as mulheres que para os homens. Historicamente as representações femininas foram fabricadas por motivações sociais diversas: míticas, religiosas, políticas, patriarcais, estéticas, sexuais e econômicas. E, há mais de vinte séculos, essa fabricação esteve sob o poder masculino. As mulheres não produziam suas próprias imagens, eram retratadas.
Em obras de arte célebres vemos inúmeras Vênus adormecidas, (como as de Giorgione, 1509; Ticiano, 1538 e Manet, 1863); Madonas castas (nas imagens religiosas das catedrais católicas como as pintadas por Giotto, no século13, e Botticelli, no 15) ou mulheres burguesas no espaço doméstico cuidando da cozinha e da educação dos filhos (como as pintadas por Rapin e Backer no século 19). Eram cenas “pedagógicas”, que ensinavam o valor da maternidade, da castidade, da beleza e da passividade.
vênus adormecida, óleo sobre tela, giorgione, 1508-10, galeria dos grandes mestres da pintura, dresden |
A estética feminina foi estabelecida, durante muitos séculos, pelo olhar masculino; as obras de arte tinham cunho “pedagógico”, com a intenção de ensinar como as mulheres deveriam ser |
A
historiadora francesa Michelle Perrot chegou a afirmar que “a mulher é,
antes de tudo, uma imagem”. Aqui sua ênfase é irônica. Refere-se a uma
forma de retratar que associava os cuidados com o corpo, os adornos, as
vestimentas e a beleza em geral à atividade, ou melhor, à ociosidade
tipicamente feminina”, enquanto os homens deveriam se ocupar de tarefas
consideradas sérias: política, economia e trabalho.
O que muda no século 21 para as mulheres que utilizam as redes sociais?
Quanto à importância da imagem, nada. Ela -continua a ter papel central
para a identidade social feminina, confundindo-se com ela. Por outro
lado, vivemos, sim, uma revolução: pela primeira vez a mulher passa a se
autorrepresentar, a produzir representações de si publicamente. Essa
produção não está mais sob o domínio exclusivo dos homens, nem restrita a
um grupo de mulheres como as artistas (atrizes, fotógrafas, cineastas,
pintoras, escultoras etc.) ou as modelos. As mulheres comuns tornam-se
protagonistas de sua vida. Chegam a dispensar a ajuda de outra pessoa
para tirar a própria foto: estendem o braço e miram em sua própria
direção. Algumas marcas de câmeras fotográficas desenvolveram inclusive
um visor frontal para que a pessoa possa ajustar o foco caso use o
equipamento para se fotografar.
A mulher “hipermoderna” reivindica algo novo: o seu protagonismo público e sua “autenticidade”. O que se soma, agora, à revolução tecnológica da sociedade capitalista. Com acesso facilitado a câmeras digitais, a telefones móveis que dispõem desse equipamento e à rede, além da existência de uma plataforma que dá suporte ao armazenamento e oferece possibilidades ao usuário para compartilhar essas imagens pela internet, a mulher passa a se autofotografar nas mais diversas ocasiões, de situações corriqueiras a viagens. Nas palavras do filósofo Gilles Lipovetsky: “O retrato do indivíduo hipermoderno não é construído sob uma visão excepcional. Ele afirma um estilo de vida cada vez mais comum, ‘com a compulsão de comunicação e conexão’, mas também como marketing em de si, cada um lutando para ganhar novos ‘amigos’ para destacar seu ‘perfil’ por meio de seus gostos, fotos e viagens. Uma espécie de autoestética, um espelho de Narciso na nova tela global”.
© wavebreakmedia ltd/shutterstock |
Nesse novo ambiente o artificialismo e a mistificação da imagem passam a ser “out”.
Deusas etéreas cedem espaço a mulheres que querem ser vistas como
“reais”: escovam os dentes, fazem caretas para a câmera, dirigem seu
carro e não se importam em ser fotografadas em momentos que antes
estariam à margem da esfera pública. Tanto que 42% das usuárias do
Facebook admitem a publicação de fotos em que estejam embriagadas e 79%
delas não veem problemas em expor fotos em que apareçam beijando outra
pessoa. A regra é: quanto mais caseiro, “mais natural”; melhor. O que
não significa que essa imagem seja, efetivamente, “natural”, mas que há
agora um “gerenciamento da espontaneidade”.
O imperativo da
representação feminina nas redes sociais é: “seja espontâneo”. Uma norma
paradoxal, assim como a afirmação “seja desobediente, é uma ordem”,
escreve o sociólogo Régis Debray. Ele faz uma interessante leitura do
que poderíamos chamar de “ditadura da espontaneidade”. Segundo o autor,
abandonamos o culto da morte, vivido pelas sociedades tradicionais e
religiosas, para vivermos o “culto da vida pela vida” – uma espécie de
“divinização do que é vivo” que se apoia no eterno presente e não mais
em uma crença no além.
Vemos emergir mulheres que cultuam o que veem no espelho e postam, “religiosamente”, novas imagens de seu cotidiano – sem que tal culto resulte em algum tipo de censura externa ou de autocensura moral. Em outro contexto, como durante o período em que a religião católica era dominante, esse “culto de si” e ao corpo seria considerado um dos sete pecados: a vaidade. Esse imaginário, aliás, é muito bem representado por um quadro do séc. 15, de Hieronymus Bosch, no qual o demônio segura um espelho para que uma jovem se penteie.
Hoje o novo espelho global não é marcado pela vigilância moral. Ao contrário, há um contínuo incentivo da cultura para que as mulheres “se valorizem”, busquem sua singularidade e não se baseiem mais em modelos inalcançáveis (como as top models e outras famosas). E para que percebam em si mesmas uma possibilidade legítima e singular de ser no mundo.
A própria familiaridade e aproximação da mulher com o universo da
produção de auto-representações pode levá-la a questioná-las. As
mulheres já estão, como escreve Lipovetsky em seu livro A tela global, “cultivadas” pela mídia. Educadas em sua gramática, sabem que o photoshop,
a produção e a edição das imagens criam uma mulher irreal e passam a
ver essas representações “entre aspas”, distanciando-se criticamente
delas. Elas aprendem com recursos autoexplicativos a modelar sua
iconografia, a alterá-la, brincar com ela ou melhorá-la (possibilidades,
antes, restritas aos profissionais).
Mas a consagração do
“culto de si” não significou um isolamento da mulher. Os álbuns
publicados nas redes sociais conciliam, contra todas as expectativas, o
individualismo e as trocas. Um se alimenta do outro. Há um ciclo:
exponho minha individualidade, acompanho a do outro e ele a minha e,
assim, somos incentivados a produzir e expor, cada vez mais, as nossas
imagens. Trata-se do nascimento de uma “identidade coletiva”, em que a
individualidade não elimina a interação, mas é seu motor. Nesse sentido,
a identidade coletiva não é produto apenas de uma adesão grupal e sim
uma forma de negociação de posições subjetivas – esse é o paradoxo
identitário a ser considerado.
Fotos pessoais e “amigos”
virtuais (ou não) ditam o ritmo desse espaço interativo. Quanto mais
caseiro, mais cotidiano, mais espontâneo, maior o número de relações
entre as pessoas, que passam a valorizar a autenticidade e a vida de
quem é “próximo”, “real”. Há, na base desse fenômeno, uma democratização
dos desejos de expressão individual na medida em que as mulheres buscam
conquistar espaços de autonomia pessoal – que traduzem a necessidade de
escapar à simples condição de consumidoras daquilo que outros produzem.
Elas querem colocar seu rosto no mundo. Aparecer ou não na “tela
global” passa a ser uma questão de existência. Por essa razão, ter
visibilidade e oferecer sua identidade publicamente é conferir
importância à própria existência. O que é, também, uma forma de poder.
Nesse ponto a mídia – como campo de visibilidade – passa a ter papel
central para entendermos a luta simbólica pelo reconhecimento.
No
entanto, essa “democratização” da auto-representação feminina não deve
ser tomada como sinônimo do fim da competição estética e ética entre as
mulheres. O que tudo indica, o que presenciamos não é a instauração de
uma igualdade, mas a ampliação do número de mulheres na disputa por
visibilidade e poder. Amplia-se, assim, a arena para buscar um poder que
não está dado de antemão, mas que deve ser conquistado e manejado pela
apresentação e representação de suas singularidades, de suas diferenças.
Um agir que se manifesta na criação, no controle e no poder simbólico
de sua própria imagem no espaço público, que só se realiza com o
reconhecimento do outro nas interações sociais, associativas e na
ampliação dos círculos de reconhecimento que estão dentro e fora do
espaço de produção da imagem.
http://www2.uol.com.br/vivermente/artigos/facebook_o_novo_espelho_de_narciso.html
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