26/04/2010 - 08:32
atualizado em 27/04/2010 - 08:19
Quando emagrecer é perder mais do que quilos
ELIANE BRUM
Volto ao tema do que é ser gordo neste mundo porque tenho cada vez mais convicção de que compreendê-lo é chave para acessar nossa época. Somos aturdidos, invadidos e bombardeados por reportagens sobre dietas, conversas sobre dietas, receitas de dietas, livros de dietas, profissionais especializados em dietas e, agora, reality shows com gente tentando emagrecer e eventualmente fracassando. Quando olhamos para alguém, comece a reparar, nosso primeiro ou no máximo segundo olhar avalia se a pessoa é gorda ou magra. Quando descrevemos alguém – e também quando criticamos ou xingamos –, a gordura é um dos primeiros tópicos. Se tivéssemos acesso às promessas feitas hoje a santos ou outras entidades místicas, eu apostaria que a maioria está com a agenda lotada de pedidos de devotos implorando pelos milagres dos quilos a menos.
Pense por um segundo: o quanto estar ou
não acima do peso ocupa suas conversas com amigos e familiares, as
preocupações do seu cotidiano, o tempo da sua vida?
Queremos acreditar que é uma obviedade desejar ser magro. Que não há
outro jeito de ser na vida. E que é “natural” nossa preocupação com o
peso e com as dietas. Será? Desde que nos tornamos uma espécie inscrita
na cultura, não há nada de natural em nós, exceto o funcionamento
biológico do nosso corpo – pelo menos até onde a ciência ainda não
conseguiu interferir. Se assim é, o que o valor da magreza, que vai
muito além de um padrão de beleza, diz sobre nós? Ou, visto pelo avesso,
o que a rejeição à gordura significa?
É muito
menos óbvio do que parece. O argumento da saúde é sempre o primeiro a
surgir, por ser supostamente indiscutível e vir embalado nas melhores
intenções. Mas, acredite, nem todos os gordos são doentes. Ou obesos.
Alguns exibem ótimos exames de colesterol e triglicérides, tem pressão
normal e bom funcionamento do coração. Nem toda gordura é doença. E,
mesmo quando se torna doença, a saúde não é a única medida para avaliar a
qualidade de uma vida humana.
Para ampliar
nossa compreensão sobre algo que perpassa nossa vida, entrevistei uma
mulher vista como “gorda”. Há algumas semanas, ela iniciou uma dieta.
Neste momento, emagrecer é um projeto em curso em sua vida. Ela tem 37
anos, 1m69 de altura e pesava 84,5 quilos quando iniciou o regime. É bem
sucedida no que faz e tem amplo reconhecimento profissional. Exames
médicos mostraram que não tem nenhum problema de saúde ligado ao peso.
Quis entrevistá-la porque ela ousa ir além do lugar comum e faz uma
reflexão profunda sobre as implicações de sua decisão de emagrecer.
Para esta
mulher, fazer dieta é uma forma de violência. Mesmo assim, procurou uma
nutricionista e seguiu em frente. Com generosidade, ela nos explica suas
razões. E o que nos diz fala não só dela, mas de todos. Fala não apenas
de gordura e de dieta, mas de aceitação. Do lugar do outro na nossa
vida – e da complexidade do olhar que nos reflete, mesmo quando não nos
enxerga ou só enxerga uma parte de nós.
Esta é
uma conversa sobre escolhas. E um convite para aumentar o número de
pontos de interrogação no nosso jeito de ver o mundo.
Eu:
Quando começamos a conversar, você falou que acha assustador ser
tratada como obesa mórbida – e isso usando uma calça 44. Como é isso? Ela:
O nível de magreza esperado hoje é tão elevado que, por vezes, sou
cobrada como se meu peso ultrapassasse os 100 quilos e eu sequer
conseguisse comprar roupas em lojas não especializadas, o que está bem
longe de ser verdade. Outro dia estava no telefone com uma prima que
comemorava a minha iniciativa de fazer dieta e exercícios físicos. De
repente, no meio da conversa, ela diz: “Ainda bem que agora você
resolveu emagrecer num projeto de longo prazo. Porque, se você chegasse
aos 40 anos desse jeito, estaria fodida! Fo-di-da, entendeu?”.Fiquei
pensando que estaria fodida se não soubesse quem eu sou e qual o meu
eixo nessa existência. Estaria fodida se não tivesse uma profissão que
adoro, que ajuda a mudar o mundo – para melhor – e que me permite
sustento próprio e alheio desde os 21 anos. Estaria fodida se não
tivesse pais amorosos e amigos tão queridos para partilhar a vida.
Estaria fodida se vivesse na miséria, em condições indignas, sem acesso à
educação e à saúde, como boa parte da população brasileira. Estaria
fodida se não tivesse experimentado um casamento bacana ou se, depois de
divorciada, tivesse me metido em relações de afeto abusivas, como não é
raro acontecer com mulheres carentes. Estaria fodida se não tivesse
equilíbrio emocional ou se passasse fome ou se tivesse sido vítima de
violência física ou se fosse alguém sem um pingo de caráter. Por
qualquer dessas coisas eu realmente estaria fodida. Agora, fo-di-da por
pesar 80 quilos? Como assim, gente?
Eu: Você se descobriu gorda na universidade. Como foi lidar com o sofrimento das primeiras rejeições?
Ela:
Foi ruim, como não é difícil imaginar. Quando você ainda é insegura
sobre “o que é” ou sobre “quem está se tornando”, e alguém a rejeita
pelo fato de ser gorda, a sensação é de que você toda não tem valor
algum. É quase impossível entender o quanto de dificuldade do outro tem
ali, o quanto não é possível dar ao outro o poder de definir quem você é
e outras coisas que na vida adulta tornam-se claras. Quando se é jovem,
um minuto de rejeição reduz você a um monte de massa gordurosa
amorfa... A grande dificuldade é construir uma identidade sobre a tal
massa. O sofrimento pode até não ser enorme, nem destruidor para algumas
pessoas – meu caso. Mas um tanto dele é inevitável.
Eu: Qual foi a primeira humilhação por causa do peso?
Ela:
Lembro especificamente de uma. Considero que, na época, não estava
realmente obesa. Devia pesar uns 70 quilos. Viajei para a praia, com
duas amigas. Um dia, saímos de carro para dar uma volta, era eu quem
dirigia. Chegaram dois rapazes próximos da janela, e começamos a
conversar. De repente, um deles olha pra mim, aponta e diz: “E essa
barriguinha sobrando aí?”. Os dois deram uma bela gargalhada, com um
prazer irônico e meio sádico. Não deixei ninguém perceber, mas me senti
um lixo.
Eu: Como é ser olhada como se tudo o que há em você fosse excesso de peso, como se gorda fosse tudo o que você é?
Ela:
A minha sensação é de estranheza total, de não entendimento real desse
modus vivendi. Não há empatia que eu tente que me faça absorver o peso
como critério de exclusão de pessoas. É tão absurdo quanto a
discriminação por raça, dinheiro ou religião. Não consigo aceitar. No
caso do peso, posso até me render aos efeitos da discriminação e
emagrecer, mas dentro de mim não consigo aceitar esse critério de
exclusão. Lembro de uma história que foi muito marcante. Um tempo depois
de me divorciar, cheguei ao trabalho e ouvi dois colegas conversando
sobre mim, sem que se dessem conta da minha presença. Um deles disse:
“Se ela emagrecesse uns dez quilos, não ficaria nem um segundo solteira
no mercado...” Fiquei arrasada. Saí de fininho, com um nó na garganta e
pensando: “Que desgraça de mundo é esse em que vivo?”
Eu: E como é não ser olhada com desejo por um homem?
Ela:
Recentemente um cara, inteligente e muito divertido, depois de algumas
cervejas soltou esta: “De onde saiu uma mulher como você, criatura? Meu
Deus...” (com ar de interesse e até meio embasbacado). E, em seguida:
“Agora, me diz por que a gente não consegue tudo em uma mulher só? No
fundo, eu sonho com uma mistura de Catherine Deneuve e Simone de
Beauvoir...” Bem. Não preciso dizer que eu era a Simone de Beauvoir da
história, certo?
Eu: Aconteceu de você desejar muito um homem e claramente ele não conseguir ficar com você porque você é gorda?
Ela:
Já aconteceu de reencontrar uma antiga paixão, com quem havia retomado
contato por MSN, telefone e email. Ficou claro que queríamos nos
encontrar pessoalmente, com os típicos e deliciosos jogos de sedução em
andamento. Ele resolveu ir até a minha cidade, com a desculpa de visitar
um amigo. Menos de três horas depois que havia chegado, já estávamos
almoçando juntos. E esta foi a última vez em que nos encontramos durante
os dias em que permaneceu aqui. Ele é um cara muito bonito. A última
vez que havia me visto eu estava com uns 10 quilos a menos e, não tenho a
menor dúvida, me dispensou por estar acima do peso. Estar gorda
destruiu as chances de reaproximação, não importa o quanto tenha sido
boa, sedutora e divertida a conversa pessoal. O sentimento é de raiva. E
de indignação. Que culminam numa grande “menos valia”. Uma mulher pode
até ser forte. Mas não é deus.
Eu: Você
fala neste primeiro olhar, que acontece numa festa, na boate, em algum
lugar público. O olhar do desejo, antes de saber se a pessoa é legal ou
não, inteligente ou não. Como é para você? Você tem desejo por um homem
acima do peso estabelecido como normal? Ou, parodiando seu exemplo, você
também quer uma mistura de Jean-Paul Sartre com Alain Delon? Você se
sentiria atraída por Sartre antes da primeira palavra trocada?
Ela:
Meu último namorado era mais gordo do que eu e tinha uma respeitável
barriguinha. Meu ex-marido era magro. Já fiquei com gordos, obesos,
magros, magérrimos. Não tenho preconceito quanto a isso. Tenho cá meu
fraco por sedutores (e não é exatamente o peso que importa nesse caso), o
que venho mantendo sob estrito controle racional. Numa boate, o tipo
que primeiro chama minha atenção, antes de conversar, é, em geral, um
homem moreno ou negro, com traços fortes e não perfeitos. O que é capaz
de definir campeonato é o fato de ele ser espirituoso e com alguma
“pegada”. Não é um Sartre que procuro. Ele não foi nada bacana com a
Simone... Quanto a Alain Delon, confesso meus pré(e pós)-conceitos:
homem muito bonito, em regra, tem de se esforçar pouco e, com isso, não
desenvolve ao longo da vida habilidades importantes. As eventuais
exceções só justificam a regra.
Eu: Como é estar comendo um doce e sentir o olhar repressor do outro?
Ela:
Já experimentei de tudo, desde o olhar materno até o do vizinho de mesa
no shopping... Os olhares desconhecidos não têm importância. Mas a
reprovação de alguém querido é sofrida.
Eu: Por que você acha que a sociedade tem tanta dificuldade com as pessoas acima do peso estabelecido como normal?
Ela:
Acho que todas as sociedades sempre tiveram um padrão de beleza
estabelecido e sempre foram cruéis com quem não atende a este padrão. A
exclusão com o diferente-marginal não é algo privativo do mundo
contemporâneo. A questão é que, hoje, na classe média e alta da maioria
dos países ocidentais, o belo equivale essencialmente à magreza. Ser
gordo significa se tornar alvo da exclusão do diferente, que é própria
das organizações sociais. Algo cultural e praticamente inevitável. Em
regra, o ser humano, quando se depara com a diferença, se sente
ameaçado. “Se ele está certo e é diferente de mim, isso significa que
estou errado?”. Esta é a pergunta que o consciente ou o inconsciente das
pessoas faz. E é isso que as impulsiona a tentar mudar ou até destruir o
diferente. É muito difícil que lidem bem com a possibilidade de vários
certos, a partir de várias escolhas, próprias de diversas realidades.
São estas dificuldades individuais com a diferença que, reunidas, formam
um coletivo de exclusão, em determinados extratos sociais. Neste
espaço, o coletivo excludente recai, também, sobre os obesos.
Eu: Você já se sentiu menor por ser grande?
Ela: Já me senti uma mulher invisível. Grande, gorda e invisível...
Eu: Como é isso? Me fala um pouco mais como é ser grande, gorda e invisível...
Ela:
Você está com mais três amigas em uma boate. Duas delas são magras.
Você e a outra amiga não são obesas, mas estão claramente acima do peso.
Os homens passam e só olham, conversam ou coisa que o valha,
espontaneamente, com as mulheres magras. Para você e a outra amiga
conseguirem contato é preciso que uma conversa entre todos se dê ou
alguma coisa semelhante. Aí pode vir à tona algum tipo de qualidade sua
que chame a atenção. Bom humor, inteligência, simpatia... Caso
contrário, é como se nós, as mulheres gordas, não existíssemos. Os
homens não olham, nem falam, nem se interessam por sua existência
terrena. Eles, nos próximos dias, podem até passar horas falando para os
próprios amigos ou familiares que não se importam se uma mulher é gorda
ou não, que querem uma mulher “real” e gente boa, que paqueram todo
tipo feminino em bares e boates, mas a verdade é que, se você é gorda, o
universo masculino de classe média/alta não percebe sua existência.
Como eu disse: grande, gorda e invisível.
Eu: Como você sente o olhar do outro sobre você, no cotidiano?
Ela: Especificamente sobre o olhar masculino, é ruim não senti-lo sobre o meu corpo com desejo.
Eu: Como é não sentir este olhar de desejo? Tente me contar, descrever isso...
Ela:
A sensação é de não existir. Não é que você não seja aceita, nem amada o
suficiente. Você não é sequer vista como mulher. Não há um olhar
masculino que a espelhe. Sem alteridade, como é possível ter o mínimo de
certeza de que uma parte do feminino realmente permanece ali, onde você
sente estar?
Eu: Qual é a sua relação com o espelho?
Ela:
Gosto de me olhar no espelho. Porque, sem meias palavras ou falsa
modéstia, me considero realmente uma mulher bonita. Não maravilhosa ou
estonteante. Mas bonita. Não é isso o principal que me define enquanto
mulher. Mas faz parte do meu feminino ser bela. E gosto dessa parte.
Gosto até quando estou com um vestido velhinho, meio mal arrumada...
Mesmo quando estou assim, meio enfraquecida, ainda vejo algo bacana
espelhado. O que me assombra é a incapacidade de as pessoas verem. Mesmo
porque eu consigo ver isso nos outros, nas circunstâncias as mais
variadas possíveis.
Eu: Você acha que é mais difícil para você tirar a roupa quando transa com alguém? O que passa na sua cabeça nesses momentos?
Ela:
Curiosamente, não tenho a menor dificuldade com esse momento. O que é
ruim é quando o homem desaparece depois. Tenho a impressão que foi
insatisfação com o meu corpo. Aí é duro de aguentar. A reação imediata é
subir os muros de proteção. Haja apoio de amigos e terapia para lembrar
que sair do mundo não é a melhor solução.
Eu: Se você fosse definir como, em geral, as pessoas a enxergam, que olhar seria este?
Ela:
Como pessoa, o mundo me enxerga com admiração e carinho. Mas, insisto
em dizer que os homens, em regra, não me enxergam como mulher desejável.
Sempre que emagreço isso muda. Por mais que me esforce, não consigo
realmente entender o porquê.
Eu: Como você reage ao sentir este não-olhar de desejo masculino?
Ela: Eu passei a fazer dieta e atividade física regular para sentir o olhar de desejo.
Eu: Você já consegue sentir a mudança de olhar e de postura com relação a você desde que começou a emagrecer?
Ela:
Bem aos poucos. Emagreci apenas quatro quilos e meio, estando acima do
peso ainda. De todo modo, olhares começaram a mudar. O interessante é
que a minha postura não mudou em nada. Está aqui a mesma mulher que
tenta equilibrar delicadeza e força, que aprendeu a seduzir com
inteligência, que é bem humorada e, para os próprios padrões de
julgamento, bonita. A diferença é que, agora, até na balada tem gente
cogitando dar uma chance a ela. Há tempos eu sabia que seria assim.
Sempre soube que era balela aquela história que “a obesidade está na sua
cabeça e quando você emagrece fica mais autoconfiante e é por isso que
os homens te olham mais”. Balela. A autoconfiança sempre esteve no mesmo
lugar: no próprio eixo, nos valores, na certeza interna de que 15
quilos a mais não mudam quem você é ou o quanto você se sente feminina.
Muda, sim, o olhar do mundo. Só quem se sabia antes mulher e ainda se
sabe depois é que pode afirmar isso. São tão poucas assim, que a teoria
do “tudo está na sua cabeça” acaba prevalecendo. Mas eu sabia que não
era coisa da minha cabeça, mas do espaço em que vivo. Exatamente por ter
certeza disso e pelas facilidades que me render a isso traz, estou indo
em frente.
Eu: A saúde é uma preocupação sua, com relação à gordura, ou não?
Ela:
Ainda não tive problemas de saúde em razão da gordura. Devo me
preocupar, por fazer parte de uma família de cardiopatas, com pressão
alta. A questão é que, apesar da gordura, decorrente mais da quantidade
do que como e menos da qualidade dos alimentos escolhidos, estou com a
saúde, do ponto de vista médico, em dia. Então, não posso fingir que
estou emagrecendo por “uma questão de saúde” ou que seja realmente “por
mim”. Seria mais fácil e legítimo. Mas não é verdade. (A verdade) é
muito menos nobre. Eu emagreço para atender a uma exigência externa,
social, de um padrão de magreza. Consciente que não é um desejo próprio
genuíno, nem uma prioridade interna, nem qualquer demanda de saúde. Foi
uma vontade que surgiu para atender a algo que me é totalmente externo e
um tanto frívolo. Repetir isso não é fácil. Mas é honesto.
Eu: Na sua decisão de emagrecer é possível saber o quanto é desejo seu e o quanto é necessidade de ser aceita?
Ela:
Estou realmente cansada da rejeição, principalmente a masculina, por
não ter o peso que se considera adequado. Correndo o risco da
generalização, acho que, se um homem estiver diante de uma mulher bacana
e gorda e de uma mulher com mais dificuldades emocionais e magra, ele
escolherá a segunda. Também estou cansada da reprovação familiar e
social por estar gorda. Eu quase posso ler nos olhares amigos: “Mas como
alguém como você, disciplinada e dedicada, não emagrece logo e se
mantém magra?”. Gordura tornou-se sinônimo de indolência, preguiça,
pouca confiabilidade e quase falta de caráter, em determinadas esferas
sociais. Neste contexto, minha escolha é 100% decorrente da necessidade
de ser aceita. Na verdade, eu escolho dar este poder ao mundo em que
vivo e atendê-lo. Não é um desejo meu, desejo aqui entendido como algo
que vem dos próprios valores, do inconsciente, do centro. É uma escolha
para facilitar a aceitação externa.
Eu: O que você perde por ser gorda?
Ela: Perco, principalmente, o olhar de desejo masculino. E “ganho” o olhar de reprovação familiar, dos amigos, conhecidos...
Eu: E o que você perde, ao tentar emagrecer, além de quilos?
Ela:
Poderia dizer que perco algumas coisas como: 1) a maior disponibilidade
de tempo que tinha para minha família (agora que priorizei fazer
atividade física frequente, os horários ficaram mais apertados); 2) os
convites para tomar cerveja (não consigo tomar refrigerante zero, então
prefiro não aceitá-los para evitar a tentação “que desce redondo”); 3)
os jantares mensais realizados em casa para os amigos, verdadeiros
encontros gastronômicos; 4) a leveza com que sentava a qualquer mesa
para comer (agora passo os dias contando calorias e concentrada em
evitar excessos). Mas não é isso o principal. Eu perco principalmente a
sensação de que guio a minha vida pelos meus valores. Perco uma das
coisas que me é mais cara: a fidelidade àquilo em que acredito. E eu
acredito que magreza é uma das características mais irrelevantes de uma
pessoa. Acredito que usar meu precioso tempo para investir em algo tão
irrelevante é um verdadeiro absurdo, com tantas outras prioridades e
demandas mais importantes na vida. Acredito que a sociedade atual perdeu
a noção do que é básico indispensável e do que é absolutamente
supérfluo nos seres humanos. Apesar de pensar todas essas coisas, eu
traio aquilo em que acredito. Torno-me parte de um conjunto burguês,
oco, superficial, vazio e – por que não dizer? – até medíocre. E finjo
que estou extremamente feliz, e só feliz, por emagrecer. Afinal de
contas, quem é que vai acreditar na maluquice de uma mulher se sentir
mal pelo simples fato de se render à pressão externa, se ela está mais
magra e, teoricamente, “mais bonita”, com todos os ganhos que isso
implica? Ninguém acreditaria que, no lugar de uma felicidade plena pela
“beleza-magra adquirida”, eu esteja sentindo que perder a mim mesma não é
nada fácil.
Eu: Se há tantas perdas, por que emagrecer? Você me escreveu que algo de você “já começou a morrer”. O que? Que luto é este?
Ela:
É o luto de quem entrou para a manada. De quem perdeu a própria
individualidade, que não está na gordura, mas na capacidade de ser fiel
aos próprios valores e prioridades. O luto de quem desistiu de defender a
multiplicidade pós-moderna – onde haveria espaço inclusive para os
obesos, ou seja, para existências e escolhas as mais diferentes
possíveis – e se rendeu à verdade única moderna: a magreza. É o luto de
me ver misturada a valores que sempre considerei de segunda linha, como a
valorização excessiva da imagem – o que parecemos – em vez daquilo que
de fato somos. Há algo da minha alegria genuína que vai se perdendo
nesse processo. É como se eu pensasse: “Tudo bem, pessoal, vamos lá.
Serei uma de vocês. Dá mesmo muito trabalho sustentar ser eu mesma nesse
mundo”. Há algo de muito triste nessa experiência que, aliás, tem muito
de desistência. E não adianta dividir essa tristeza, porque todos
julgam esse sentimento como uma “defesa inconsciente típica do gordo”
que, com base nela, vai acabar achando um jeito de “boicotar o
emagrecimento e voltar ao lugar triste da obesidade”. Na verdade, não
vou boicotar, não. Dá vontade de dizer: “Respirem aliviados e não gastem
saliva. Serei magra e farei tudo para me manter assim. Estará tudo bem
em algum tempo. Estaremos do mesmo lado”. Já entendi que, no meio social
em que vivo, é o único jeito de não sofrer significativas sanções de
exclusão.
Eu: Mas, vou insistir. Se é um processo tão violento para você, por que emagrecer?
Ela:
É verdade que dieta é uma violência com relação a tudo o que eu
acredito. Talvez soe até bobo e infantil reclamar da escolha de
emagrecer. É provável até que não faça sentido e que o sentido aparente
termine sendo o amoroso-sexual. Sem dúvida, este ganho está presente.
Mas há outros. E não é que eu não consiga viver sem estes outros ganhos.
Consigo, tanto que vivi, e bem, até aqui. A questão é que estou exausta
do esforço que é preciso para isso. Eu não quero ouvir dicas sobre a
importância de emagrecer, correr, fazer dieta, a cada telefonema, a cada
encontro, a cada email. Diante do meu pedido expresso para que isso não
ocorra, não quero ver o melhor amigo passar os meses se segurando, com
grande esforço, para não terminar cutucando o assunto de forma
impiedosa. Não quero ouvir alguém que pesa mais de 120 quilos gritar que
“não há ninguém no mundo que seja feliz sendo gordo!”, me acusando de
mentir para mim mesma, quando afirmo que magreza não é exatamente um
valor próprio. Não quero ser ignorada na boate porque estou gorda, nem
ouvir que estou solteira porque estou gorda, nem perceber os colegas
fiscalizando o tamanho do meu prato, nem ver condenação estampada nos
olhares que me rodeiam. Este massacre pelo emagrecimento me encheu tanto
que prefiro virar uma “paty-tamanho-40”, com um sorriso no rosto sujo
por uma folha de rúcula e por um tanto de covardia. Eu realmente estou
cansada de, tendo de lidar com tantas coisas difíceis no cotidiano,
ainda aguentar os olhares que me dizem o quão imperdoável é estar acima
do peso. Veja bem: Não é que seria impossível aguentá-los. Mas é preciso
esforço demais... E a vida já anda com desafios significativos. Declino
da batalha e entrego os pontos.
Eu: Você me disse que emagrecer é uma espécie de “se perder e se prostituir”. Por quê?
Ela:
Como eu disse, emagrecer foi uma escolha para atender algo que não é
fruto do meu próprio desejo. Eu, que me considero tão centrada,
tornei-me refém de valores que jamais serão meus, não importa o quanto
os siga, por fraqueza ou por covardia. Especificamente sobre a sensação
de estar me “prostituindo”, é como se o pagamento pelo esforço em
emagrecer se desse em olhares de admiração e de tesão. Às vezes parece
um preço alto e absurdo demais para este estranho sexo social. Quando
penso que estou usando uma parcela da minha vida para lidar com isso e,
no mesmo instante, no mesmo país, há alguém faminto, me sinto uma
verdadeira aberração. Tenho receio de terminar esse caminho meio
perdida, sem saber direito aquilo em que acredito, nem muito bem o que
desejo. Tenho receio de uma nostalgia saudosa do gozo assumido e
inteiro, muito mais suave, a que estava acostumada. Porque podia até não
ser perfeito, mas eram escolhas inteiras. Sempre achei que estar
íntegro no erro é melhor do que alienada em eventuais acertos exógenos.
Por outro lado, atendendo a essa exigência social, a vida no meio em que
me relaciono pode se tornar mais fácil. Estar acima do peso dificulta
bastante os dias numa terra de mulheres deslumbrantes, bem cuidadas e
magras. E há um momento da vida em que você descobre que, se já superou
tempos difíceis, tem direito à sua cota mínima de covardia e futilidade
nessa existência. Estou exercendo minha cota. Covarde demais para me
manter quem eu era, me rendi ao mundo e estou fazendo sacrifícios para
emagrecer. Não falo isso como uma grande vítima. Mas como uma mulher
adulta, como um sujeito de escolhas conscientes e incoerentes.
Eu: É uma escolha sua ou do mundo?
Ela:
A escolha, eu acho, é minha. Porque é lógico que eu poderia continuar
gorda. Dentre as mulheres gordas que conheço, talvez eu fosse daquelas
que realmente sustentaria, razoavelmente feliz, ser quem é. Quer saber a
razão de eu não fazer isso? É lógico que quero, e muito, como todo ser
humano, ser aceita e amada. Mas, mais do que isso e principalmente: eu
quero uma vida mais fácil. Simples e fútil assim. Estou cansada de
batalhar por valores que as pessoas, inclusive as muito queridas, sequer
entendem. Juntar-me ao todo dá uma sensação de alívio coletivo e este
alívio faz com que me deixem em paz, que é exatamente o que eu desejo e
preciso agora. Então eu tomo só um chope pequeno, num dia de calor
insuportável, em que não haveria nada demais tomar os três habituais. E
volto caminhando para casa para queimar as calorias. No dia seguinte,
não como duas fatias de pão integral light, mas só uma. Por fim,
confesso o pecado para a nutricionista, que me absolve, com um ato de
contrição que exclui queijo amarelo por dois meses. Saí mais cedo do bar
e perdi as últimas gargalhadas para não correr o risco de tomar mais um
chope. Fiquei com fome durante toda a manhã e sonho, há dias, com
requeijão derretido no micro-ondas. Mas tudo bem.
(Eliane Brum escreve às segundas-feiras.) ebrum@edglobo.com.br Jornalista, escritora e documentarista. Ganhou mais de 40 prêmios nacionais e internacionais de reportagem. É autora de
Coluna Prestes – O Avesso da Lenda (Artes e Ofícios),
A Vida Que Ninguém Vê (Arquipélago Editorial, Prêmio Jabuti 2007) e
O Olho da Rua (Globo).
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